ANGOLA - MAR DE MONSTROS - CAP I

Quatro semanas antes da data da saída dei por concluídos os trabalhos de preparação das malas.
Tudo o que me ocorria levar para a minha expedição de pesca estava lá dentro. Carretos, canas, muitas linhas, uma imensidão de jigs, alicates, anzois e pouca roupa.
Vi e revi tudo em detalhe, inúmeras vezes.
Por mim, um mês antes eu já podia ir para o aeroporto de Lisboa e aguardar por lá, a roer as unhas de nervoso, esperando a chegada do ansiado momento de embarque.
Acredito que roendo-as bem, até aos ombros, teria uma forte possibilidade de bater o recorde de garoupa angolana, na modalidade paraplégico sem braços.
A razão desta anormal excitação não oferecia dúvidas: eu ia de novo pescar com o Luís Ramos!
Para mim, que preciso de aprender pesca como quem respira oxigénio, a possibilidade de ir pescar com ele pela segunda vez era vista como o momento alto do ano, uma autêntica…“peregrinação de fé”.

Tinha tantas expectativas nesta viagem a Angola, ia tão carregado de esperanças e sonhos de pescar garoupas grandes e pesadas com o Luís que infelizmente acabei por acusar excesso de bagagem mental.
A senhora do check-in no aeroporto, ao ter ideia dos peixes que eu iria combater em Benguela, sugeriu o pagamento das centenas de quilos a mais, e que as minhas ambições fossem despachadas no Fora de Formato.


Gente a querer ir pescar com ele há sempre muita. Demasiada, na opinião dele.
É gente que pesca miudezas ao pica-pica durante décadas. Por isso vive as suas vidas em sobressalto, com sonhos pejados de peixes fantasma enormes, daqueles que deambulam envoltos em lençóis brancos pelo tecto do quarto.
Peixes de sonho sim, enormes, os tais que dobram canas, rompem linhas e roubam jigs.
Afinal, quem não quer ir pescar com ele?! Quem não quer aprender com quem sabe muito?
Questiono-me se as centenas de pessoas que costumo ver deitadas no chão do aeroporto de Lisboa, com ar esgazeado, aquele olhar absorto e sonhador de quem quer ir pescar peixe grosso, não estarão todas a aguardar o dia da partida de um avião para Angola. E se o Luís terá lugar no barco “Incrível” para todas elas. Terá?! Talvez não, se excederem as seiscentas e vinte.
Provavelmente grande parte da multidão de pessoas que vai a pé a Fátima, de joelhos, de cócoras, de gatas, aparece lá no Santuário a pedir fervorosamente a bênção de vir um dia a receber um convite desses.
Que pode nunca chegar. Vocês nem se dão conta do privilégio e da raridade que é ser “O” escolhido para ir a bordo do barco “Incrível”.

Todos querem ir para Benguela pescar ….os aeroportos estão cheios de pessoas cujo sonho é estarem ao lado dele.

O Luís é um dos últimos lobos solitários vivos, alguém absolutamente autossuficiente, alguém que pesca sempre melhor quando não tem de arrastar uma bola de ferro com ele.
Sim, tudo o que exceda o seu barco Incrível, uma cana Zenaq e um jig CB-One…está a mais.
Embora não o diga, e ele é uma pessoa muito reservada nesse aspecto, outros pescadores maçam-no. A explicação é simples: ter gente a pescar a seu lado faz com que pesque menos.
Os resultados de duas pessoas a pescar, ele e outro, são sempre inferiores aos que obtém quando pesca só. Os bichos selvagens sabem que contam apenas consigo próprios para conseguir alimento. Sabem o que fazer para obter resultados e fazem-no, abdicando de comodidades, de conforto.
Contam consigo e as suas capacidades e isso basta-lhes. Há gente que nunca poderá ser….”domesticada”.

Onde acaba o peixe e começa o homem? Vocês têm alguma ideia da força e técnica necessárias para vencer um peixe com uma cauda destas?!... Acaso será possível que semelhante força bruta possa ser vencida com uma linha fina e um anzol?

A minha cunhada tem um cão podengo em casa. É um cão de coelhos adoptado, que obviamente nunca irá virar cão de companhia.
Salta por cima de mesas e cadeiras, não pára de roer sofás e sapatos, em suma, faz do interior de uma casa um espaço de matagal.
O animal é hipernervoso, come tudo o que encontra, desde plásticos a chicletes passando por caixas cheias de comprimidos Ben-U-Ron.
Os veterinários não têm mão no cachôrro, e em estado de desespero, receitam que se dê ao bicho uma dose diária de carvão vegetal. Para o desintoxicar.
Não adianta querer domesticar um cão selvagem, pois ele nunca deixará de ser um cão selvagem, autossuficiente, independente e pouco dado a molenguices. O termo selvagem já diz tudo.

É sempre uma questão genética. Não tentem pôr o Luís a trabalhar atrás de um balcão numa peixaria, a escamar peixe. Embora esteja quase perto daquilo em que ele é bom …não é bem o mesmo. Não vale a pena! Ele nasceu para ser pescador, para guiar o seu barco por espaços abertos, livres. E mais que isso, para o fazer… sozinho.
Por vezes deixa que alguém visite o seu mundo, mas ninguém entra verdadeiramente nele. Um profissional é sempre mais eficaz a trabalhar isolado, sem entraves.
Mesmo assim muitos pescadores acreditam. Vão directos para o aeroporto e esperam por lá algo que nem sabem o que é. Ficam por ali, vagueando, como os fervorosos adeptos de um clube de futebol viajam para outro país, sem bilhete. Sabem que a lotação do jogo está esgotada mas vão. Rezam por um milagre. Pelo menos esses têm a esperança de ouvir o barulho das bancadas vindo do interior…
Dia 29 de Fevereiro de 2024 foi dia mundial das doenças raras. É celebrado apenas de quatro em quatro anos. Também os convites para ir pescar com Luís Ramos são raros, …surgem quando surgem...


O que tem Angola de diferente dos outros sítios onde se pode pescar? Tem tudo.
Francamente não me importo de fazer no aeroporto o papel de sem abrigo, adepto de pouco banho e noites mal dormidas, se no fim do arco-íris estiver uma garoupa preta das grandes. Elas são... viciantes e potentes! Têm um ar abezerrado, corpo quadrado, uma mistura perfeita, nas doses certas, de muro em cimento e Mike Tyson.
Por mim, um bicho daqueles acima de 30 quilos vale de imediato uma tatuagem no braço esquerdo com a data, o nome do barco, a marca da cana, do carreto, da linha, do leader, das argolas, do jig, do anzol, da temperatura da água, e não se fala mais no assunto.
Vejam abaixo esta que pesquei, e que apenas tinha 14.100 kgs. É um peixe lindíssimo!

É um peixe com uma brutalidade de força! Vou explicar-vos num dos próximos artigos o que faz o peixinho vermelho pendurado num dos assistes do jig. Vão achar curioso…

Não faltará quem se atreva a sonhar que está ao lado do Luís, combatendo peixes enormes, combates duros e esforçados que duram eternidades de tempo. Mas mesmo esses que ousam sonhar glorias impossíveis estarão em termos de imaginação uns furos abaixo daquilo que é a realidade quotidiana, rotineira, de alguém que por profissão escolheu ser livre.
Há pessoas que nem em sonho conseguem chegar tão alto quanto aquilo que é ser Luís Ramos no seu trabalho diário. A cada dia de mar o Luís faz o peixe da vida de milhares de pessoas. Todos os dias.
Acreditem que se me sinto honrado pelo convite pessoal para o visitar. De alguma forma também o faço em representação de todos aqueles que gostariam de poder estar presentes e não o podem fazer. Gostaria de poder transformar o meu "individual" em algo que seja o nosso "colectivo". Por isso mesmo aqui assumo a responsabilidade de tentar que a minha escrita reproduza para vós as sensações que vivi durante uma semana incrível, muito desgastante em termos físicos mas ao mesmo tempo muito compensadora, quer em termos de resultados de pesca quer da aprendizagem contínua que pretendo fazer ao longo da minha vida.
Venham daí para uma incrível odisseia de pesca. Aquilo que vos proponho é que se deixem ir pela mão de quem sabe do ofício: Luís Ramos de seu nome.
Os próximos artigos irão trazer muita pesca: peixes gigantescos, linhas rebentadas e muito mar.

Não percam.


Vítor Ganchinho


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2 Comentários

  1. Olá Vitor. Obrigado por mais uma boa história.
    Faz-me lembrar a esperança que tive de fazer um curso de jogging ... hehehe
    (ainda não morreu)

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    Respostas
    1. Paulo Fernandes, esta saga de Angola vai ser muito interessante, sobretudo os últimos números.
      Mas temos para quinze dias, há muita coisa a contar.

      Vá acompanhando...

      Abraço
      Vitor


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