HINO DE MALEDICÊNCIA A DOIS MOTORES SEM CULPA... - CAP I

Senti um arrepio de frio pela espinha acima e pensei que nesse dia nem devia acordar.
Alguma coisa, ou tudo, poderia vir a correr muito mal naquela jornada de pesca jigging pesado.
E correu!
Cheguei ao ponto de encontro à hora marcada, cambaleando das pernas e cheio de dores no corpo. O dia de pesca anterior fora duro, com muito peixe grosso.
O Luís Ramos já lá estava. Mas estava mal, ou seja, tinha o ar condicionado do jeep ligado, …às 6.30h da manhã. Para quem tem problemas de rinite alérgica e sinusite como eu, aquilo não começava propriamente…bem. Ar condicionado gelado logo pela madrugada é algo que nenhum médico receita a uma pessoa debilitada.
Antes de começar a levar com a fumaça persistente dos “motores” do barco Incrível, inspirei uma golfada de ar fresco da manhã, dei duas bisnagadas de Nasomet nas narinas e preparei-me para o pior.
Sendo filho de uma mulher persistentemente doente, a D. Odete, sempre prostrada, sempre cheia de cólicas, ciática e reumático, eu não devia sequer ter embarcado...

A incipiente potência de 0.4 cavalos, …mas vezes dois!...

Todavia… embarquei.
O barco “Incrível” tem destas coisas, atrai passageiros inocentes como os candeeiros de iluminação pública atraem borboletas brancas. Para a seguir lhes ...queimar as asas.
Estranhei a falta de equipamentos de segurança obrigatórios e adequados a qualquer embarcação rápida: a ausência dos capacetes, bancos ergonómicos de corrida com os respectivos cintos, coletes de segurança automáticos, a não inscrição do nome do piloto e copiloto na consola, respectivo grupo sanguíneo, etc. Seria isso sinal de que o barco era lento? Que os motores não tinham força?!
Quando olhei para a potência dos motores o meu coração desfaleceu: 0.4 cavalos.
Certo que eram logo dois, mas todavia não mais de 0.8 cavalos no somatório da força de propulsão total disponível. Qualquer escova de dentes eléctrica ou berbequim de bricolage caseira tem mais potência.
Para mim, que estou habituado a barcos de pesca a sério, bem equipados, voadores, aquilo era o prenúncio de graves problemas no horizonte. Adivinhava-se… pasmaceira.


Percebi que algo estava errado quando, em vez de um normal arranque em cavalinho, em força, saímos muito lentamente. Reparei que, ao fim de longos 45 minutos de navegação, os meus olhos estavam ainda fixos, absortos, a ler as instruções de lavagem na etiqueta da camisola do funcionário da gasolineira. Resolvi intervir, questionando:
_ Luís, estes motores são mesmo para barco, ou foram recuperados de uma batedeira para bolos?....
Pelo seu silêncio deduzi que não queria muita conversa sobre o assunto. Ele ofende-se quando o tema é o seu barco de estimação. 
À medida que nos afastávamos de terra, empurrados para o largo pelo vento, percebi que o problema era sério.
Tive mais certezas logo a seguir: as bimbas, tradicional embarcação angolana de placas de esferovite e tábuas de madeira atadas com cordas, a remos (!!), começaram a passar por nós e a incomodar-nos com o seu cachão.

Uma bimba. Reparem na esteira que faz… aproveitei o timing certo para bater a fotografia, antes do cachão chegar até nós, antes de tudo ficar ...tremido. 

Por norma não estou habituado a que embarcações a remos me passem nas minhas saídas de mar mas queria pescar e numa situação daquelas, a pessoa está por tudo.
Os marinheiros das velozes bimbas passavam por nós e cumprimentavam, com a complacência de quem sabe que está a passar por uma indigente e lenta casca de noz.
Percebi da parte deles alguma compreensão quanto às nossas limitações quando vieram oferecer-se para nos rebocar de volta ao porto. Para eles não havia dúvidas: padecíamos de avaria…
Mas o Luís Ramos estava decidido a arriscar a sair da baía protectora, e deixou que o vento nos levasse. Ao sabor do vento, ….rumo ao mar infinito, dentro de um alguidar de plástico branco.
Adeus …ponta da Restinga.
Algumas garrafas vazias a boiar passavam por nós com facilidade. O mar está cheio de plásticos motorizados.


Sair naquelas condições era obviamente um erro crasso, com consequências nefastas por descobrir. Estava calor.
Atendendo à canícula e humidade densa que se fazia sentir, sentia-me em câmara ardente, num pré-velório anunciado.
Se de manhã bem cedo a fraca brisa ainda nos empurrou, aos poucos veio a desvanecer-se. A última réstia de vento que havia despareceu. Ficámos parados.
A calmaria atroz que se instalou não fazia adivinhar nada de bom. Como sair dali? Os motores, puxados ao máximo, roncavam e largavam fumo, mas não nos movíamos.
A dada altura a maré mudou e a corrente levou o “Incrível” para uma linha de água ao largo onde o lixo acumulado era abundante. Há ilhas de lixo flutuante em todo o lado.
Dizia o Luís: “...às vezes consigo encontrar o par de chinelos completo e fico com o dia ganho”...


Eu que gosto de mar, que adoro pesca, estava a gostar cada vez menos daquilo, confesso.
Verdade que havia muitas embarcações na zona e que em caso de desespero podíamos sempre pedir ajuda. Podíamos até largar os very-lights e os fumos vermelhos de socorro, assim os tivéssemos.
Procurei manter a calma e ser racional: depois de esbracejarmos muito para chamar a atenção de alguém e atendendo à velocidade caracólica das bimbas, seria necessário esperar um ou dois dias até chegarem até nós.
Debaixo daquele sol abrasador, com a pele a destilar suor abundantemente, a água disponível poderia dar para uma hora. Ou menos, caso a decisão não fosse prescindir do banho de imersão matinal e de alguma eventual lavagem do barco.
O Luís faz questão de manter o barco sempre limpo e asseado e por isso anda sempre a esfregar com umas esponjas. Nunca se sabe quando aparece um colecionador que queira comprar um barco antigo.
Já a engolir em seco e francamente preocupado, tentei distinguir os vultos dos motores por entre o fumo da popa. Trabalhavam, fumegavam bem, mas a velocidade de deslocação não era superior a um metro por dia.
Ainda se ao menos tivéssemos remos….
Perguntei-lhe pela balsa e pelos coletes salva-vidas: …”Luís, será que temos…?...
_ Já tive! Há três anos tinha…

Este amigo disse-nos para não nos preocuparmos, que ia à pesca para o Namibe, mas que na volta, ao final da tarde, nos daria uns peixes.

Na eventualidade de o vento rodar e soprar de novo para terra, pensei em como aligeirar a carga do barco.
Não me ocorreu nada mais que deitar fora as coisas dele mais supérfluas: as canas Zenaq, os carretos Shimano e o GPS/ sonda. Isso podia ir tudo fora! Ficaríamos apenas com os jigs: se os peixes os comem aquilo deve ter algum valor nutricional.
Por mim, sem dúvida o que era imprescindível manter a bordo era mesmo o espigão de remate em aço inox. Nestas coisas de naufrágios, barcos sem motores, falta de água e sede extrema, é minha opinião de que devemos sempre precaver a possibilidade de alguém ter de ser sacrificado.

Não estou seguro quanto ao resultado final do meu desempenho, nem do número de horas que necessitaria para lhe atingir o cérebro, mas esta peça na nuca dele sempre era para mim um princípio táctico.

Ele percebeu a minha inquietação. Sem mantimentos, sem água suficiente, sem peixe na sonda, a situação era cada vez mais apertada. Ia-mos morrer à sede e à fome. 
Já em desespero quase total, tentou distrair-me com conversa mansa, daquela de embalar criancinhas. Dizia ele: “Vitor, estes motores têm cerca de 10.000 horas de trabalho e são bons”...

Meu Deus! Como se eu pudesse acreditar no que me dizia…
A rapaziada quando quer vender motores ruins faz de tudo. Dá-lhes uma passagem com verniz na capota, puxa-lhes o lustro, tenta embelezá-los e fazer com que pareçam novos.
No mínimo os motores dele têm já umas 100.000 horas, …isso sim.
Qualquer pessoa poderia ver que os velhos, cansados, ruços e grisalhos motores ostentavam ainda a gravação com o nome do seu primeiro dono, um tal de Vasco da Gamaha.
Aqueles motores foram à Índia várias vezes, eram novos em 1497, mas por fim estavam já assucatados, submersos, carregados de cracas e perceves, agarrados a uma barcaça que jaz afundada e inanimada a oeste do Lobito.
Passo fotos dos motores e a seguir do local onde foram recuperados:

Estes “motores” largam fumo mesmo quando estão desligados. Quando se dá à chave, deixamos de nos ver uns aos outros. É a chamada “aurora fumeal”...

Para as pessoas das gerações mais novas, por não conhecerem a história dos motores marítimos de combustão é natural que não consigam perceber que estranhos objectos cinzentos são estes fixos ao painel de popa, mas tenho a dizer-vos que são motores. Arcaicos sim, mas motores.
Antigamente também havia uns “passe-vites” que se rodavam à mão, e que também se pareciam com isto, mas embora também tivessem um hélice, não eram usados em barcos. As pessoas faziam puré de batata com eles.
Mas estes que veem na foto eram mesmo para pendurar dos barcos e fazer aquilo andar. Não andavam mas era essa a intenção.
Concretamente este modelo acima foi utilizado até final do século XIX, para realizar percursos marítimos de média duração, até aos vinte metros de deslocação.
Serviam para as pessoas se dirigirem, dentro das docas, aos seus barcos, esses sim com motores a sério.
Mostro-vos onde eles estavam a apodrecer, submersos:

A última embarcação de onde os motores foram utilizados e posteriormente recuperados pelo Luís Ramos para o seu…bote.

Por estranho que vos pareça estes engenhos trabalhavam a dois tempos, admitindo qualquer tipo de combustível, normalmente aditivos, restos, óleos de fritar peixe e coisas dessas. Alguns deles trabalhavam até a gasolina.
Foram, ao seu tempo, uma evolução, ainda que ténue, dos ainda mais antigos propulsores a querosene e petróleo.
São de facto máquinas muito antigas. Pensava-se que já não havia nenhum destes motores em funcionamento, mas afinal ainda há.
Alguns, os poucos que se conhecem, estão hoje expostas em museus, nomeadamente o nosso Museu de Marinha. Pois ali, em Benguela, pelos vistos ainda há motores desses no activo, e em dose dupla, em blister de dois.
Estão para a náutica de recreio como as passarelas de papel estão para a indústria da aviação civil.

Não é exemplo único: um táxi da marca Oldsmobile, modelo XT 303, propriedade de Augusto Macedo, um beirão que trabalhou toda a sua vida com esta viatura táxi, de matricula AB-61-86, fez nas ruas de Lisboa a exorbitante marca de 2 milhões de quilómetros, desde 1928 a 1997.
O táxi tornou-se uma personagem histórica da cidade, o que levou Macedo a ser convidado para vedeta do filme Taxi Lisboa, do realizador alemão Wolf Gaudlitz.
O velho táxi sobreviveu sem um único acidente até ao falecimento do seu motorista em 1997, ano em que caducava a sua carta de condução.
Para que saibam, Augusto Macedo era o mais antigo taxista do mundo ainda no activo. A Câmara de Lisboa deu o seu nome a uma rua em Carnide.
Mas esse antigo táxi tinha força, 11 cavalos de potência, e os motores do Luís Ramos apenas respondem por 2x 0.4 HP, o que é manifestamente pouco.
Vejam a imagem:

Há casos incríveis de longevidade.

Quem me dera ter uma bimba! Isso é que é barco rápido! Mas em termos de investimento entendo que seja um esforço grande para o meu anfitrião, e por isso temos de nos contentar com um bote de fibra. 


Bimba angolana. A remos, a costa nunca pode estar longe...

Ponto de ordem a este artigo: o Luís não merece.
Nem tão pouco os pobres motores que tão bom trabalho fazem todos os dias, pese as duras condições em que trabalham.
Mas a natureza humana é vil, desapiedada e não se compadece de decências e gratidão quando chega o momento de dizer mal.
Devo dizer-vos que sou muito melhor a fazer o oposto, a dizer bem, agrada-me fazer a apologia de alguém, ser construtivo, ver a pessoa pelo seu lado bom, pelo seu perfil mais positivo.
Porém, há dias em que o chicote da má língua resolve estalar, e aí, salve-se quem puder. Hoje foi um dia desses, …de ingratidão pura.
O que leram é apenas um ensaio de maledicência sobre dois motores que me serviram o melhor que qualquer motor pode servir: levaram-me ao mar e trouxeram-me de volta.
O que podemos pedir-lhes mais?

Não perca no próximo número o desenrolar desta situação de naufrágio e saiba como terminou esta saga.
Será que os cansados motores Gamaha acabaram por trazer o “Incrível” de volta a terra?


Vítor Ganchinho


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3 Comentários

  1. Oh pá, que barrigada de riso....muito muito bom.
    Obrigado por este capitulo de maledicência
    Emanuel Fernandes

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    Respostas
    1. Luis Ramos08 maio, 2024

      O que eu me ri Emanuel. Até tive que parar o barco de tanto rir...kkk..Genial mesmo

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    2. Bom dia Emanuel Fernandes Amanhã vamos ter uma recaída, o "Incrível" vai ser jogado na lama, uma coisa que aquele barco decididamente não merece.


      Vamos ver qual a minha visão do barco do Luís, e o que ele pode sofrer nas mãos de uma mente perversa....


      Abraço
      Vitor

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