O tempo de Deus é diferente do nosso, e por isso nem sempre os milagres acontecem quando mais necessitamos deles.
A bimba de reboque “Fé em Deus” estava com algum atraso! Mas já não faltava tudo: estavam a menos de oito metros de nós logo mais um dia e iríamos ter contacto.
De resto já conseguia ver as pestanas e os pelos dos braços dos nossos bravos salvadores, o que nestas coisas é sempre bom sinal.
A mim parecia-me que o mais difícil estava feito. Informei o Luís de que finalmente tínhamos condições para sair dali. Atracar junto a nós e laçar um cabo não me oferecia dúvidas e muito menos que o TVDE-Barco nos pudesse rebocar a bom ritmo, mesmo tratando-se uma embarcação a remos.
Vocês sabem o quanto os motoristas são fortes de braços, ou não se chamassem todos Fred. Mais uma semana e estaríamos em terra.
Difícil não é aguentar isso, mesmo sem comida e água. Difícil é escrever um romance de 300 páginas em que a letra “e” não consta. Isso é difícil e Georges Perec conseguiu fazê-lo, em 1969, sob o título de “La Disparition”.
Difícil é o Luís Ramos pescar um jig CB-One de 200 gramas, lançando para o fundo um pargo capatão!
Há zonas onde eles aparecem em cardume... e os ataques são sucessivos. E brutais! |
Bem que tento pôr o Luís no caminho certo da pesca.
Canso-me de lhe mostrar como se faz mas há coisas que ele não sabe e tem dificuldade em aprender. O nó FR é uma delas. E também fazer assistes não lhe sai normalmente bem. O que tenho insistido com ele!....( *)
Vê-se que tem dificuldade para trabalhos manuais mas não convém que fique a cismar que não consegue. O melhor mesmo é deixar de ficar nervoso de cada vez que tenta enrolar linha sobre um anzol. Tremem-lhe as mãos e fica com secura na garganta.
Muito terá ele a mudar se quer subir o seu nível de pesca mas para começar a primeira coisa a fazer é mesmo…pescar mais.
Numa saída de mar ele passa metade do dia a pescar e a outra metade a tentar fazer nózinhos. Ora já se sabe que os níveis de concentração desaparecem, e às tantas já nem ele próprio sabe se está a pescar ou se está a tirar um curso embarcado de bricolage com fios de nylon.
Para ele, fazer um nó FR não é só fazer um nó FR.
É todo um ritual, uma operação que exige técnica apurada e preceitos matemáticos. E depois é todo o enrolo de se colocar no sítio certo. Ele faz os nós na popa, mas se for para a proa já não sabe fazer!
Bem vi como ele coloca sempre os pés no mesmo sítio, na mesma posição, a cana ao alto no caneiro, a linha fluorocarbono com um comprimento preciso, bem definido, e saliva várias vezes sobre a linha multifilar enquanto testa o força do dito nó.
Para que tenham uma ideia, ele pega na argola sólida e antes de a apertar dá-lhe mais voltas que uma bailarina de lap-dance dá ao varão em três dias de trabalho.
Quando parece que já está, pega no bobinador e recomeça os enrolamentos. Fica uma perfeita obra de arte é verdade, mas a seguir vem de lá um filho da mãe de um peixe baiacu, corta a linha em segundos, rente à superfície, e tudo recomeça de novo.
Mostro-vos os “moços”:
O terror de Angola! O mais temido de todos: o baiacu. Também se podia chamar de “corta-linhas” porque nada lhe resiste. |
Habilidade a sério é ser capaz de pescar dois destes “índios” sem ficar sem a linha e o jig. Eu fiz isso, uma dupla.
Pescar peixes-balão é algo de surreal: nós sentimos uma picada estranha, algo como uma vibração e um levantamento do jig. A seguir iniciamos a subida e aparentemente é um peixe pequeno.
A meio, a resistência começa a subir e já temos dúvidas se não será um peixe grande. E quanto mais sobe mais difícil é porque mais água eles têm dentro. No fim é um martírio de força…
Bem mais fácil é fazer um pargo capatão, que se bate, mas vai de mais a menos, muito forte e nervoso no fundo, e menos brusco ao chegar à superfície.
Isto sim, é de mestre! Com estas míseras bocas pequeninas só os pesca quem tem uma técnica refinada. |
Aquilo que o Luís diz, e com muita convicção, é que nunca se sabe quando a seguir vem o tal peixe de 70 kgs que faz força a sério.
Pois sim, mas não deixa de ser uma grande marmelada passar tanto tempo a fazer bricolages daquelas, a bordo.
Eu, para fazer aquele nó, …faço o nó e já está. Tivesse eu tantos cuidados a fazer nózinhos daqueles e nem teria tempo para pescar.
Digo-vos sinceramente que convencer a minha Lena a casar comigo levou muito menos tempo que o Luís leva a fazer um nó FR.
Mas o moço é de convicções fortes e dali ninguém o tira. Dizia-me ele: ”nós puxamos para o lado e não para baixo, para não ficar encavalitado “...
E continuava: “e a seguir fazemos mais uns enrolamentos, para conseguir uma zona lisinha que faz uma caminha e assim passa bem melhor pelos passadores da cana”...
Sim abelha, …e eu a olhar para todo o lado à procura do tupperware que a minha amiga Carla tinha mandado com papaia e ananás madurinho…
Vou para pescar não vou para fazer renda de bilros!
Passo-vos uma foto daquilo que ele faz, só para que vejam que este moço perde tempo em filigranas coloridas que nada têm a ver com pesca:
Ora já se sabe, com estes “pendent`s” todos, cor assim com cor assado, tudo a condizer, e a pessoa chega ao fim do dia e nem tem tempo para pescar… |
Isto não deixa de ser bonito, muitas linhas enroladinhas, coloridas e em fila indiana, mas pesca pouco.
E numa terra em que o peixe abunda mas é difícil de capturar, nada como pescar bem, pescar muito, e podermos oferecer algum às pessoas que ficam em terra.
Passam a cumprimentar-nos efusivamente! Por mim não me importo de oferecer peixe, até porque é uma forma segura e rápida de fazer amigos. São convicções que tenho.
Tenho a certeza de que oferecer uns quilos de peixe a cada uma das pessoas que esperam a chegada dos barcos no cais vale sempre a pena.
Mais que isso: eu poderia pedir-lhes para votarem em mim caso fosse necessário eleger, entre mim e o Luís, o melhor, mais técnico, mais elegante e mais bonito pescador.
O major Valentim Loureiro fez isso com torradeiras e secadores de cabelo em Gondomar e ganhou as eleições.
Os peixes de bom porte sucedem-se, a agressividade destas garoupas rebenta-nos com o material de pesca. Fotos e peixes pescados pelo Luís Ramos. |
Já a bom ritmo e cadência certa, com a costa cada vez mais perto, passou por nós uma lancha frigorifica rápida. Este tipo de embarcações é muito comum pois para além de serem relativamente económicas também têm muita arrumação.
A criatividade africana excede em muito tudo o que se possa fazer por cá. |
Vamos ver como acaba esta saga já no episódio seguinte, com a nossa chegada a terra...
(*)- Foi o Luis que me ensinou a fazer assistes...a ingratidão não tem limites....
Vítor Ganchinho
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