HINO DE MALEDICÊNCIA A UM PESCADOR SEM CULPA... - A CHEGADA A TERRA - CAP IV

Cada vez mais próximos de terra, quase se poderia adivinhar o que se passava no pontão de areia da Restinga. O desespero das duas famílias enlutadas seria certamente desolador.
Não faltaria gente a dar-nos como mortos, previa-se ambiente tenso, semblantes fechados.
Nada poderia pressupor que ainda estivéssemos vivos ao fim de tantos dias. Quando o “Incrível” sai para o mar já se sabe, é tragédia certa. É garantido. 
Aquele barco não passa de um cemitério de pescadores, por mais que o Luís diga que não é bem assim. Ele ainda acha que o barco dele tem condições para sair do cais mas eu acho que não e disse-lho:
_ Luís, este barco é um atraso de vida. É pequeno! É perigoso e morde joelhos. Morde mais que um rottweiler.
_Não, este barco é grande. Eu sei que é grande. E pesca bem.
_ Mas eu gosto de sair é no outro. Devíamos ter saído no outro!
E ele perguntou-me tantas vezes qual era o meu barco favorito que, embora constrangido, tive de lhe responder:
_ O outro! Sim, o outro, esse é que é o meu barco favorito. É rápido, navega bem e não massacra os joelhos.
_ Não estou a ver….mas é um Everglades 2x 300 HP que está na marina?
_ Não, não é esse. Muito melhor. Eu já mostro o barco quando chegarmos…

Ao fim de vários dias sem comer, famintos, perdidos no mar, nós estávamos capazes de comer até lagostas grelhadas...

Preparámo-nos para o choque emocional de chegar a terra e apresentar as nossas péssimas condições físicas. Desnutridos, sujos, sem dormir, pouco ou nada abonava a nosso favor.
Havia centenas de pessoas juntas à entrada da Restinga, como de costume. Nos meios mais pequenos, as pessoas acabam por criar rotinas em função das poucas possibilidades de diversão que têm.
Ao sábado vão ao cinema, ao domingo vão ao restaurante/ bar Batuk beber uma imperial de fim de dia, e durante a semana, de segunda a sexta, ao final da tarde, vão ver a chegada do barco “Incrível” com os corpos.
Estas coisas são assim, já se sabe, as pessoas têm um interesse mórbido em esmiuçar todos os detalhes das desgraças. Por essas e por outras é que o canal Correio da Manhã CMTV tem o sucesso que tem.
Posso mostrar-vos algumas imagens:

Vejam a quantidade de pessoas que se concentrou para ver chegar os mortos.

O pessoal já esperava ansioso por saber quantas vítimas o Incrível tinha feito nesse dia. Faziam-se apostas e o nosso nome era referido com um inevitável e malogrado “...que Deus tem”.
A funerária esfregava as mãos de contente e levantava as mãos ao céu por ainda haver barcos como o “Incrível”: _ “Este barquinho é uma mina! Deus o guarde a flutuar”!
Estava tudo prontinho para nos receber, as valas estavam abertas e a uma profundidade decente.
Podíamos ser enterrados no Lobito, mas o cemitério da Catumbela tem vantagens: a quantidade de terra deitada por cima é pouca, ligeira, para não se tornar pesada e incómoda para o defunto, e por baixo é muita, à descrição. É a quantidade que as viúvas quiserem. Daí a opção.
Na minha lápide figuravam duas linhas enternecedoras: “Finalmente a descansar em paz, sem chamadas do call-center da MEO a vender tarifas. E por baixo um aviso: “Não ponham flores na campa que eu sou alérgico ao pólen...”.
O meu companheiro mereceu um epitáfio a dizer: “Está-se bem! Cama demasiado estreitinha mas vizinhos muito pacatos”...

Como podem ver, as pessoas já estavam todas de luto, a adivinhar o pior.

Mas pese embora o mau agoiro de ter passado um pássaro negro a piscar os olhos, a verdade é que contrariando todas as expectativas, ainda assim conseguimos o milagre de chegar ao cais. Vivos.
A minha mulher não me reconheceu, com barba e cabelo comprido de tantos dias no mar. Entretanto, e ao fim de duas longas semanas de ausência, sem receber ao menos um telegrama, já se sabe: tinha casado outra vez.
Sair no Incrível dá nisto, é sempre um salto no escuro, nunca se sabe.
Era evidente o desapontamento de grande parte dos presentes, alguns deles a reclamar uma indeminização por terem estado duas horas à espera para nada.
_Mas quer dizer que nem vai haver cadáveres hoje?... protestavam.

Lamentando a decepção das pessoas, e lamentando não poder fazer melhor quanto ao meu estatuto de defunto, fui então mostrar ao Luís o barco no qual confio e me parece ser uma opção bem melhor que o seu “Incrível”:

Este sim, é um barco com outras condições para o jigging. Podem pensar que este barco é estranho mas nunca poderão imaginar que tenha uma electrónica tão avançada e sofisticados sistemas de ejecção rápida de assentos. Aqui podem vê-lo na versão de embarque fácil, para quem prefere chegar à embarcação a nadar.

Conto-vos a verdade: a história deste barco tem algo de trágico. Esta é a terceira vez que afunda, e se das primeiras duas o dono ainda se deu ao trabalho, e despesa, de o recuperar, da última já nem quis saber. Arranjou um “encarregado” para lhe fazer manutenção, mas o pobre homem faleceu dois dias depois do barco ter afundado de novo. Provavelmente de ataque cardíaco.
“Já avisaram o problema”, dizem os locais. Não terá solução, ninguém irá fazer nada até se desfazer por completo.
Mas felizmente tudo se compôs e daí a horas já estávamos a combinar ir jantar fora. Queríamos celebrar o nosso salvamento. O novo marido da minha mulher deu-me um grande abraço e disse-me que as minhas roupas e sapatos lhe serviam, e que estava muito contente com ela. Haja alguém que dê valor ao que a Lena faz na cozinha. 
Confidenciou-me que só com o valor que recebeu da venda de metade dos meus carretos no OLX tinha investido em dois T4, num condomínio de luxo em Palm Jumerah, no Dubai. E ainda tinha as canas todas, as amostras e os jigs para despachar. Trabalhando bem, à conta da venda dos meus tarimbecos de pesca brevemente estaria cotado em bolsa em Wall Street. 
O Luís desta vez convidou-me para ir jantar a um restaurante típico angolano. A princípio achei estranho não haver clientes nenhuns mas no fim entendi a razão.

Vocês sabem como as comidas em Angola são picantes à conta do jindungo...



Nota de escritor:
A estatura moral e social do Luís, a sua personalidade ímpar, o seu invejável currículo de pescador, são os factores que permitem esta brincadeira.
Tivesse ele menos confiança em si próprio, fosse ele uma pessoa minimamente insegura, e vocês nunca teriam a possibilidade de ler isto.
Não será fácil levar tanta pancada …mas ele tem as costas largas e aguenta tudo!....

Um abraço, Luís!


Vítor Ganchinho


😀 A sua opinião conta! Clique abaixo se gostou (ou não) deste artigo e deixe o seu comentário.

5 Comentários

  1. Luis Ramos15 maio, 2024

    😂😂😂😂..São tantos pormenores deliciosos e fantásticos que valem mais do que pescar toneladas de peixe..10 estrelas grande amigo e que imaginação 💯💣💣👌

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Oi Luis! Eu sei que não voltarei a ser convidado para sair no "Incrível". É justo, depois daquilo que eu disse. Reconheço a injustiça, o barco não merece e os motores muito menos.

      De qualquer forma, espero que isso não prejudique a minha ida aí em 2025, na perspectiva de desta vez sairmos os dois no "Desincrível".

      Não tenho a certeza se a Carla está preparada para enviar os cubinhos de papaia e ananás num tupperware completamente estanque, IP68, mas era bom prever esse detalhe. Isto para o caso de optarmos por entrar no barco na sua versão de embarque fácil, a nado.

      Um grande abraço a toda a malta amiga que foi ver chegar os corpos, aquela rapaziada da Restinga que estava de luto quando chegámos.

      Abraço
      Vitor







      Eliminar
  2. Ahahahah!
    Tiveram uma chegada em grande, só não percebi porque não foi enviado nenhum pombo correio com uma mensagem vossa a dizer que apenas estavam com uns dias de atraso.
    Mais uma grande viagem do incrivel.
    Abraço aos dois
    Emanuel Fernandes

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Emanuel, vamos entre hoje e amanhã acabar com esta saga de Angola.
      Aquilo que falta dizer é algo relacionado com aspectos técnicos de equipamentos e técnicas, e o Luis vai ajudar a esclarecer alguns pontos.

      Eu teria mais uma resma de assuntos para tratar, e até algumas curiosidades, mas há que atender a que as pessoas que não se interessam por este tipo de pesca jigging, ou que não gostam de ler sobre as "barbaridades" que eu digo do Luis e do barco, e dos motores, também têm direito a algum descanso.

      Deixo algumas coisas por dizer, sem dúvida.

      Quanto à questão do pombo correio, ela foi considerada durante alguns dias, até ao momento em que o Luis resolveu comer o pássaro...

      Abraço
      Vitor

      Eliminar
  3. 🤣🤣🤣🤣

    ResponderEliminar
Artigo Anterior Próximo Artigo

PUB

PUB

نموذج الاتصال