MAR DE MONSTROS - CAP VII - PEIXE FÁCIL?

Para quem pesca por este luso mar português, é natural que se assumam as águas angolanas como um local mítico, onde se lança ao acaso e se conseguem peixes de sonho.
Haver peixe não significa encontrar peixe, e muito menos pescá-lo. E não, o Luís Ramos não vive num planeta diferente, onde tudo é fácil e garantido!
Não existem planetas com peixe garantido!
Há sim pessoas que, por saberem de pesca muito mais que o comum dos mortais, conseguem resultados de outro mundo.

Marte e Terra, quantos segredos encerram estes dois planetas?

Sinceramente, vocês olham para as imagens dos peixes dele e podem pensar que a vida do Luís é glamorosa, tipo “seis meses de férias, duas vezes por ano”.
Na verdade, é …lixado ser Luís Ramos!
Implica desde logo uma resistência física e psíquica absolutamente brutal, à prova de bala, e uma motivação muito acima de um pescador comum.
Eu cheguei a Angola em boa forma física, preparei-me afincadamente para isso, e passados alguns dias tinha o corpo a estalar, a reclamar dos maus tratos. Muito calor, e sobretudo muita humidade, matam-nos.
Em terra, à mesa do café, é sempre tudo muito fácil, bom e bonito, todos aguentam tudo. Mas a pesca jigging é por definição dura e muito violenta para o corpo.
Quando puxamos peixe para cima todo o dia, os braços, as costas, os pulsos, cedem e pedem alguns momentos sem picadas, sem peixes. Imploramos menos peixes.

Cada um dos monstros pescados cobra bem caro a sua derrota. São exemplares que não dão tréguas, aplicam toda a sua força contra a nossa e, em muitos casos, eles são bastante mais fortes e ganham.
Desenganem-se aqueles que pensam que o pior é subir peixes gigantescos dos abismos escuros. Não é.
Suportar a humidade relativa, isso sim, mata-nos. O calor obriga a uma hidratação constante e qualquer exposição directa ao sol é garantia de queimaduras severas na pele.
Por isso utilizamos roupas com reflexão de UV `s a 50%.
O tempo de pesca é uma insanidade, saímos de manhã pelas 6.30h da manhã e voltamos dez a onze horas depois, exaustos. E no dia seguinte o mesmo, difícil, igual.
Ao fim de uma semana, os mais corajosos já perderam toda a coragem, os mais entusiasmados já rezam por uma impeditiva avaria de um dos motores.

Uma corvina, peixe que queria fazer ali. Não muito grande, mas não teria de o ser.

Ele trabalha numa profissão de risco e desgaste rápido. Deveria ter direito a uma reforma aos quarenta anos, mas vocês sabem como é este país. Vai na volta tem de pescar até aos 98….
Não falta peixe para quem tem mais de 4500 pontos de pesca marcados no seu GPS e tem tempo para passar sobre muitos deles.
Para que não possa haver sobressaltos, a sua electrónica acompanha-o para casa, todos os dias. Isso evita tentações a todos aqueles que davam muito para saber onde pesca, embora na minha opinião aquilo que marca o seu percurso de pescador é bem mais a forma como pesca. Não tenho a menor dúvida de que, com os conhecimentos técnicos de que dispõe, seria bem sucedido em qualquer parte do mundo. Haja peixe e ele descobre-o...

Para evitar ruins acontecimentos passados, nomeadamente roturas do multifilamento, resolvi esticar a linha do carreto. Com o barco em movimento, deixei cair um jig ao mar e fiz sair toda a linha. Ao recolher, uma pancada forte, uma corrida, e no fim este bonito dourado. Antes do primeiro lance…

Garoupas fazemos algumas. Nunca muitas mas ainda assim as suficientes para nos sentirmos recompensados pelo esforço de pesca feito.
São peixes rudes, brutos, com uma força descomunal, e sabem utilizar bem os seus argumentos físicos.
Aquilo que é normal é que não se consigam encontrar. Não convém pensar que são muitas, que há garoupas a “rodos”. Não há assim tantas que se torne fácil encontrá-las.
Muitos dos locais onde detectamos isca miúda acabam por não ter nada para mostrar mas, por vezes, …o milagre acontece.
Elas são de tal forma agressivas que muitas vezes não deixam cair o jig no fundo. A estarem no local e com fome, o contacto não leva mais de um minuto. Tudo ou nada.
Estes colossos costumam estar perto de lajões com buracos, onde podem proteger-se, descansar e preparar as suas emboscadas.
Estão umbilicalmente ligadas às migrações de peixe miúdo, o seu alimento, pelo que a movimentação deste implica a sua imediata deslocação.
Pode acontecer que surjam, de um dia para o outro, diferenças abruptas de meia dúzia de graus centígrados na temperatura das águas, o que força as iscas a uma adaptação às condições que encontram nesse dia.
E isso quer dizer longas deslocações, mudanças repentinas de posicionamento, quer em termos de cotas, quer de zona.
Acontece hoje haver muito peixe grosso num ponto e amanhã não haver nada….

Uma outra que fiz, desta vez com um jig Galápagos, de 180 gramas.

Tinha prometido explicar-vos como se processa a pesca com jig mas… com isca viva.
Aparentemente um contrassenso, já que o jig é um artificial assumido, e a isca viva um outro método de pesca bem diferente. E igualmente eficaz.
Pois ali é possível que “casem” os dois e sejam muito felizes para sempre.
Aquilo que acontece é que as grandes garoupas passeiam pelos fundos, a acompanhar as migrações de peixes miúdos: cachuchos, pequenos pargos, carapau, grelhas, bogas, etc.
A proximidade aos cardumes garante-lhes alimento sempre à mão.
Por sua vez esta comedia encontra uma simbiótica segurança ao manter-se por perto destes enormes predadores: outros peixes que os poderiam afligir, guardam uma distância de reserva para com os cardumes, tendo em conta a presença das garoupas. Haverá sinais de código que indicam as intenções de uma garoupa entrar em modo de caça para comer. Não custa adivinhar um ataque repentino, uma explosão de força e precisão e uma vítima. Um ou outro peixe sucumbe de entre um cardume com muitas centenas. É certo e sabido que algum peixe terá de ser sacrificado, mas a seguir será mais seguro estar perto do que estar longe.
Quando lançamos os nossos jigs ao fundo, é corrente que ao passar pelo cardume de isca um desses pequenos peixes se crave nos anzóis. Ao sentir essa prisão, a táctica é deixar descer lentamente ao fundo, levantar um metro e aguardar alguns segundos.
O impacto é brutal! As garoupas, ao sentirem o peixe debater-se para se livrar do jig, aproximam-se e literalmente engolem…tudo. O jig também.
O que significa que passamos de uma pesca com artificial para outra com isco vivo.
Não vale a pena esperar muito tempo, porque a voracidade das garoupas é de tal ordem que o contacto é feito quase de imediato. A questão é saber se estão ou não estão nas imediações.

Este é um clássico: primeiro ferrei a “grelha”, o peixinho vermelho, e a seguir a garoupa atacou e ficou ferrada.

Ficariam espantados ao saber daquilo que é considerado ali como “by-catch”, peixes ocasionalmente ferrados e que aparentemente não contam para a estatística da pescaria. Tal como nós por cá não contamos com as cavalas, os carapaus, etc, também ali peixes que por cá seriam considerados grandes capturas são absolutamente desprezados e tidos como “inconvenientes”.
Para quem atravessa aqui tantos dias sem poder pescar à conta do mau tempo, ter a possibilidade de lançar jigs e sentir contacto já é uma alegria. Quando concretizamos capturas como as que podem ver abaixo, nós europeus ficamos felizes. Por ali, nem tanto… aquilo que se valoriza são essencialmente as garoupas.
Num escalão inferior aparecem os pargos e os demais peixes que habitam aquelas águas. Que são muitos e de espécies bastante diversificadas. 

Pese embora os locais tenham um espectro de peixes muito largo no que diz respeito a alimentação (literalmente tudo lhes serve para comer), quem pesca procura fazer a sua atenção sobre os predadores de topo da cadeia alimentar.
Verdade que a qualidade do peixe é boa. Nós temo-los por cá e muitas espécies fazem parte da nossa alimentação regular, o caso do peixe da primeira foto.

Peixes muito mais “razoáveis”, menos difíceis de escamar. Mas o que eu me diverti…

Pressuponho que consigam identificar a garoupa como presença assídua nas bancas de peixe dos nossos mercados. São deliciosas para comer!
Não é difícil gostar de um peixe firme, branco, e de paladar fino. Já outros peixes miúdos, nem tanto, alguns deles são efectivamente menos atractivos.
Desconfiar sim de quem não gosta de uma boa muamba de galinha. Viver em África significa aceitar os seus códigos, os seus usos e costumes, as suas particularidades.
Para aqueles que preferem o comodismo europeu, melhor será ficar em terra e não arriscar. Pode ser muito esgotante viver numa terra que arranca o pão nosso de cada dia da forma mais dura possível.
Angola é muito mais que pesca, é um ambiente de vida intenso, puro, verdadeiro. É isso que nos cativa naquele país, gostamos de pescar, mas gostamos também de tudo o resto.
Gostamos da sua verdade, do cheiro da terra após alguns pingos de chuva, mas também da brisa quente e fresca do mar.
Não é só pesca e peixes. É uma relação de amizade que funciona nos dois sentidos, um espelho que reflecte o que tem à sua frente. É mais que pesca, é África. Não se pesca pelo peixe apenas.
Da mesma forma que uma mãe angolana amamenta o seu bebé e está a fazer mais que dar-lhe alimento, está a criar laços de cumplicidade que funcionarão bem e reciprocamente durante toda uma vida.
Também é assim com quem se atreve a lançar umas linhas nas águas angolanas. Aquele país gosta de nós e nós gostamos dele, fica-nos no sangue para sempre.


Vítor Ganchinho


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