OS NOSSOS AMIGOS PAMPOS

Peixe-porco, peixe-gatilho, ballestas, pampos, peixe-mola, …escolham. 
Não faltam nomes ao Balistes capriscus, um viajante do azul, um pelágico que passa muito tempo ao largo, em mar aberto. Creio que o nome mais consensual será o de “pampo” e sinceramente incomoda-me menos que esse tal de “peixe-porco”. 
Bem sei que isso se deve ao ronco que emitem quando fora de água, mas ainda assim parece-me injusto que um peixe que preferencialmente é um mariscador, um peixe que não hesita em se alimentar de navalheiras, lagostas, santolas, mexilhão, perceves, etc, seja conotado com um peixe… "badalhoco"…
Dono de uma carne firme, branca, e sem muitas espinhas, o pampo é sem dúvidas o rei do filete. 
Acima dele só me ocorre o Peixe-Galo, ou Alfaquim se estivermos na zona de Setúbal, onde vivo, que é ainda mais fino. 
O pampo passou de um ilustre desconhecido, um mal-amado sem valor comercial, para um peixe que vai à lota, aos mercados, e é hoje apresentado nas peixarias das cadeias de supermercados, onde atinge um preço que pode chegar a 14 euros/ kg. 

Os cardumes aparecem-nos à superfície, comportamento típico de uma espécie pelágica, de alguém que não nos vê como inimigos. 

 
Trata-se de um peixe que nos chega com as correntes de águas quentes de Maio, Junho, debaixo dos sargaços que lhe servem de ponto de referência nas suas deslocações de milhares de quilómetros. 
Chegam-nos magros, famintos, com muito pouca capacidade de escolha no que respeita a aceitar ou rejeitar os iscos que lhe oferecemos. Têm fome. 
Aproveitando esta debilidade circunstancial causada por meses de migração longe de terra e consequentemente de fontes imediatas de alimento, há quem os pesque até à exaustão. É enquanto houver...
Confesso ter pena de quem lhes chama um peixe desportivo, porque não o são de todo. 
É verdade que depois de se alimentarem, e quando recuperados de energia, têm peso, têm força, mas daí até serem um alvo digno para um pescador sénior vai um passo muito largo. 
Nitidamente serão sim um peixe adequado a gente que se inicia nas lides da pesca à linha, quer adultos,  à procura de um desafio acessível, quer de miúdos, ávidos de aventura e que com eles vibram imenso. 
Penso serem estes últimos quem mais disfruta das guerras que podem dar se o “calibre” for o adequado. Podem chegar a 2 kgs, se o lote for bom. Por norma ficam por metade disso e ainda assim são 
adversários de respeito para miúdos com menos de dez anos. 
Quando levo a bordo crianças, não hesito em terminar a jornada de pesca num dos vários locais onde eles se encontram “hospedados”. Ficam entre nós até que as águas arrefeçam e sejam forçados a emigrar de novo. Saem quando estas esfriam a valores incomportáveis, na ordem dos 14ºC, normalmente no fim do mês de Outubro, inicio de Novembro.  

Dar-lhes comida à boca, sem luvas, é para quem conhece as suas reacções na perfeição. Se o quiserem fazer aconselho-vos umas luvas grossas porque eles mordem a sério.


Eu alimento-os. 
Para mim são um peixe que me apraz tratar bem, por reconhecer neles uma enorme capacidade de luta, de resiliência, de suportar agruras que lhe chegam de um estilo de vida que pode ser tudo menos fácil.
Um peixe pelágico é forçado a armazenar energias que durem para meses. Em alto mar, longe da costa e de tudo o que possam ser estruturas fixas, as possibilidades de encontrar comida são sempre… ”eventuais”. Pode acontecer que lhes apareça algo que lhes mate a fome, mas também podem passar alguns meses encostados a plantas aquáticas como os sargaços, sem nada para comer.
Encostam-se a objectos flutuantes e ali permanecem, à espera, na esperança de serem empurrados para um lugar com alimento. Outros peixes, mesmo habitantes das profundezas, adoptam o mesmo tipo de comportamento, encostam-se a tudo o que tenha algum volume e permaneça a flutuar à superfície. É o caso dos chernes juvenis, pelágicos numa primeira fase da sua vida, que podem chegar a ser às dezenas debaixo de um mesmo escolho. Paletes de madeira, árvores caídas ao mar, boias, folhas de palmeira e até mesmo contentores perdidos, tudo lhes serve.  
São peixes que retornam, ainda assim, aos locais de sempre. Ano após ano, o seu sentido de orientação leva-os a frequentar as mesmas pedras, a colonizar por vezes aos milhares de indivíduos lugares que lhes servem na perfeição para o seu primeiro desígnio: alimentar-se de tudo e muito, até ganharem peso!
Parece-me evidente tratar-se de um viajante que beneficia imenso da grande quantidade de mariscos que a nossa costa portuguesa oferece. Temos muita comida para eles.  
Eu ajudo. Quando passo pelas suas pedras não hesito em dar uma mãozinha e lanço-lhes algum do by-catch que tenha disponível, normalmente carapaus, cavalas ou sardas. Peixes que não me fazem falta mas que a eles dão um grande jeito…

Com um pouco de habilidade, consegue-se fazer com que levantem o corpo fora de água e belisquem o troço de cavala que temos na mão.

 
 
Nos últimos anos, por força de um reconhecimento das suas qualidades gastronómicas, os cardumes têm vindo a sofrer uma erosão significativa. Os pescadores profissionais perseguem-nos implacavelmente. 
Recordo-me de ver à saída do Sado, nos areais virados e revirados pelas traineiras à navalha, manchas enormes destes peixes. Aos milhares. As águas baixas e cristalinas em frente aos empreendimentos hoteleiros de Tróia, deixavam ver milhares de peixes interessados nos restos de navalha e caranguejos partidos pela força das ganchorras. 
Esta arte de recolha de bivalves tem vindo a sofrer um declínio significativo. Cada vez são menos as traineiras dedicadas a este trabalho, certamente por razões que se prendem quer com a provocada escassez de vida naqueles areais que quer da falta de clientes que pretendam pescar com a navalha. Há muita gente a interiorizar que os iscos artificiais, amostras, jigs, etc, pescam tanto ou mais que as navalhas e estão sempre disponíveis. É possível guardar dentro de uma caixa meia dúzia de jigs ou vinis e com isso fazer uma pesca de igual ou superior qualidade à que se poderia fazer com iscos orgânicos. Com uma vantagem técnica grande: não se estragam e duram uma eternidade.
Recordo-me bem de haver um cortejo de pampos a seguir as traineiras, quer para comer o que ficava partido e esmagado pelos ferros das ganchorras de arrasto, quer para aproveitar o “lixo” que era deitado fora depois de feita a separação das navalhas inteiras. Por lixo entenda-se uma miríade de infelizes seres vivos que eram apanhados dentro do saco de rede grossa e de onde só podiam sair depois de vistoriados sobre a mesa de escolha da traineira. 
Esta prática não devia ser permitida, a exemplo de muitas outras que não respeitam a vida marinha, nem sequer a integridade dos habitats que tanto devíamos preservar. 
Pára-se quando aquilo que se “pesca” com esse tipo de arrasto já não compensa o custo do gasóleo gasto. Ou seja,… demasiado tarde. 



Quanto vale um local destes?
Que responsabilidade deve sentir quem o conhece, perante a comunidade de pescadores dessa zona?
Vale a pena divulgar os pontos GPS? O que se ganha com isso?
Alguém tem dúvidas de que, a serem conhecidas estas marcas, estes peixes seriam pescados à linha, na sua totalidade, em pouco mais de dois a três dias? E a seguir o que fica?
Nos últimos anos tenho observado como pode ser mortífera a arte de cerco feita com redes com muitos metros de altura e duas a três centenas de metros de comprimento. 
Em zonas de pedra rasa, quase lisa, não há lugares inacessíveis, não há escapatória. Uma traineira pode, se quiser, e quase sempre querem, pescar todo o cardume. 
São muitas centenas de quilos, porventura toneladas, os que são pescados num só lance de rede. E isso prejudica e penaliza tanto o peixe como o seu pescador já que o preço por quilo baixa a níveis assustadores. O peixe não se guarda, vende-se em fresco e só há uma forma de garantir a venda imediata: fazer um preço muito baixo. 
Perdem todos, peixe e pescador profissional. Perdemos todos. Aquilo que fica é um fundo deserto, vazio…
 
Alguns deles são meus velhos conhecidos. Por qualquer razão ficaram com uma malha, uma ferida na cabeça, uma mancha, algo que me deixa identificá-los de uns dias para outros. 



Podem ver aqui um filme feito pelo meu colega Carlos Campos, em que alguns destes peixes “marcados” são bem visíveis. 
Porque as manchas permanecem algum tempo visíveis, por sarar, é possível saber quem são. 
Aqui vai: 




Um olho treinado consegue até ver mais que isso, consegue ver os lírios juvenis, de 1 a 2 kgs de peso, no meio destes cardumes. 
Não convém esquecer que são peixes que um dia terão 80 ou 90 kgs de peso e que por isso mesmo devem ser respeitados, devem ser deixados à sua vida de grandes predadores do azul.

É possível apanhá-los com a mão, se tivermos um pouco de paciência. A seguir, é fazer a única coisa que faz sentido… libertá-los.


Queremos continuar a ver estes peixinhos junto à nossa costa. Queremos saber que chegam, que se alimentam bem e vão embora, cumprindo o seu desígnio de grandes viajantes do azul. 
Boa viagem!


Vítor Ganchinho


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