PESCAR A JIG, EM ÁFRICA

É verdade que o aumento global da população humana exige mais alimento, mais disponibilidade de proteína. Mais peixe.
Porque os stocks de peixe tradicionais, acessíveis e próximos, estão quase completamente esgotados, é preciso ir cada vez mais longe, ir procurar onde nunca se foi, a remotas reservas biológicas do globo.
Sendo o verdadeiro motor da nossa vida em sociedade o dinheiro, …estranho seria que para o ganhar não se explorassem os últimos redutos ainda com vida.

Se o planeta é hoje aquilo que é, uma pequena aldeia, isso deve-se à crescente procura de soluções que permitam manter viva uma população que ultrapassou os 8 mil milhões de almas. Somos muitos, porventura demasiados.
Para piorar a situação, 50% desta enorme massa de gente vive compactada em apenas 1% de todo o espaço terrestre disponível, enquanto a outra metade ocupa os restantes 99% do planeta habitável.
Estamos em todo o lado, da floresta ao gelo, dos desertos às montanhas. Com as estatísticas a demonstrar que a população mundial vai ultrapassar os 11 mil milhões de pessoas até ao ano de 2100, o problema não será o espaço, mas sim a sua equilibrada distribuição.
A questão prende-se com a logística de distribuição de recursos, nomeadamente proteína, a esta escala algo de enorme magnitude.
Visitei várias vezes Hong-Kong, e assusta-me pensar que ali, num espaço de terra pequeno, igual ao que ocupa a cidade de Setúbal, (hoje com 120 mil habitantes), vivem mais de 7,3 milhões de pessoas. O ritmo de vida por lá, dia e noite, é assustador.
Incomoda-me ter junto a mim, para atravessar uma rua, dez mil pessoas. É tudo muito concentrado.
Em Portugal acontece o mesmo: todos querem estar na costa, no litoral. É entendível dado que as oportunidades de melhores empregos e aparentemente melhores condições de vida passam por aí.
Quase todos os humanos querem viver nas cidades e isso provoca desde logo problemas de transporte de peixe, desde os locais onde ele se cria até onde irá ser consumido.


Quem sai ao mar e pesca meia dúzia de peixes para a sua família, digamos que “a árvore”, nem sempre tem a verdadeira noção do que é “a floresta”, o mercado de peixe a nível planetário.
Custa-nos a entender como pode movimentar-se tanto valor em termos de capturas. Falamos de toneladas de peixe e toneladas de cifrões. Pensar a pesca pela realidade de alguém que a toma como um acto lúdico, é ser demasiado simples.
É ver a árvore e não ser capaz de ver a floresta.
Mas num panorama global absolutamente cinzento, vale a pena dizer que África ainda tem, ainda assim, espaços virgens.
O continente africano, fortemente assediado por embarcações comerciais, onde se cometem todos os dias grandes atrocidades, crimes ecológicos de monta, ainda assim, e não obstante tudo o que se faz de ruim por ali, guarda segredos.
Dada a sua enorme extensão, e as naturais dificuldades logísticas e organizativas de trabalhar em ambiente pouco controlado, ainda restará algo por descobrir.
Será África o últimos dos grandes redutos de pesca a ser esgotado? Certamente que sim.

O jigging enquanto técnica mais eficaz para pescar os grandes exemplares. Aqui um libanês a pescar um bom pargo.

Custa-nos pensar que possam subsistir extensões de água com centenas de quilómetros quadrados onde nunca passou um barco, ou sequer foi lançado um anzol, mas eles existem.
Todos nós pescadores sabemos que é assim, ou pelo menos queremos acreditar que é assim. Diz-nos a nossa intuição que deveria ser assim. No fundo, queremos apenas garantir que depois de uma razia completa de peixe, ficará sempre algum com ânimo para reproduzir, para recomeçar de novo. Acreditemos nisso.
Se o futuro aponta para que cada vez mais se vá procurar o peixe onde ele ainda existe, também é verdade que os custos de exploração de alguma forma protegem os locais mais remotos.
Junto às cidades mais importantes, aos centros populacionais onde é mais fácil vender o pescado, existem centros de pesca e pescadores em abundância e isso reduz os stocks de peixe a vestígios.
Isso acontece em Portugal, onde raros são os locais perto dos grandes portos não passados a pente fino todos os dias. Aí, o peixe não vive, sobrevive.
Mas ainda há regiões em África onde são raros os trabalhos de extração de pescado. As extensões de mar de que falamos são imensas e a pressão sobre os pesqueiros não tem nada a ver com aquilo que se verifica, por exemplo, na Europa.
Quando consideramos as pequenas aldeias do litoral africano, aquilo que se verifica é que a pesca é feita sobretudo à rede, muito individualizada, pouco industrial. Não passa de uma pesca de subsistência, pouco virada para a captura de mais que o necessário para o dia.
E nesses lugares, o peixe reproduz-se a bom ritmo. Isso atrai gente que quer fazer peixe para vender, para ganhar dinheiro.
É isso que leva a que sejam feitas pescarias que, sendo absolutas barbaridades em termos ecológicos, ainda assim são possíveis. Há peixe.

São pargos senhor, …pargos lucianos e pargos capatões. Pescados a jigging sobretudo. Aqui, o meu amigo Mohamed Sow, com um libanês, numa pescaria absurda...

Bem sei que muitos daqueles que leem estas linhas não têm África como destino de pesca habitual.
É até perfeitamente possível que a maior parte das pessoas não tenha sequer curiosidade em tentar o jigging. Ou sequer em ir pescar a zonas longínquas.
Talvez muitos nem acreditem que valha a pena ousar passar da toneira, ou do belisco de lingueirão. Nada contra. Cada um pesca o que quer, como quer, e não vem mal ao mundo por isso.
Na maior parte dos casos, a técnica de iniciação é aquela que perdura, a que irá ser utilizada durante anos e anos. Entendo a relutância e até o receio em arriscar a mudar para algo diferente.
Não queria no entanto deixar de mostrar aquilo que é possível fazer com uma técnica alternativa, o jigging, em locais muito pouco explorados.
Este termo do “pouco explorados” pode parecer-vos estranho porque em Portugal não haverá muitos metros quadrados que nunca tenham visto uma rede ou um anzol, mas os sítios virgens em África existem, ainda que cada vez menos.
Na circunstância este está no Senegal, na zona sul do país, local que conheço e onde pesquei e mergulhei durante mais de duas décadas. Continuo a ter contactos por lá.

Aqui um outro dia, com pargos, barracudas, lírios e meros...

Situado no coração de uma região altamente favorecida por condições naturais ímpares, o Senegal é um viveiro aparentemente inesgotável de peixe.
Quando tudo aponta para que não exista mais nada, eis que são descobertos spots de pesca não explorados e que mostram como a vida marinha pode prosperar se a não limitarmos em demasia.
Basta uma pequena fracção de tempo e o peixe reproduz e repovoa locais aparentemente… “desertos”.
O que vos trago hoje é pesca jigging num desses locais, perto de Casamance, no sul do Senegal.
As imagens falam por si, e se algo falta dizer é que o jigging é uma modalidade de pesca utilizada por profissionais do sector. Custa a crer que o jigging possa de facto ser considerado a melhor forma de pesca, mas isso acontece em fundos que agarram redes, que as destroem, e por isso a única forma é ir lá abaixo com uma linha de nylon e uma zagaia.
Mas não quero que pensem ser a única forma de pesca.
Em regiões remotas, os recursos materiais não são muitos, e por vezes não passam de uma linha, um chumbo e algo de isco orgânico, um peixe vivo, morto, ou um troço de lula ou polvo. E com isso, fazem-se pescarias de toneladas de pargos.
Os cardumes de pargos capatões, intocados pelas redes, mordem com vigôr os iscos que chegam ao fundo. São às centenas.
À noite, os pargos lucianos estão particularmente activos e fazem valer a sua força.

Vejam isto:

Clique na imagem para visualizar e na rodinha das definições para melhorar a qualidade.

A qualidade das imagens é fraca, os meios não são muitos, mas a quantidade e qualidade do peixe é muita!

A pesca à linha, a este nível, é algo de muito físico.
Para quem pesca sargos ou robalos, custa a crer que possa trabalhar-se peixe a esta escala. Entramos no domínio do físico, da força, muito mais que da técnica.
Os mais aptos são normalmente pescadores experientes, dotados de uma incrível força de braços, mãos duras e calejadas a dispensar luvas, e costas firmes a desafiar todo o tipo de dúvidas. O peixe é bloqueado no fundo, e deixa-se esgotar de forças. Falamos de peixes que facilmente chegam aos 50 kgs de peso, sendo que não é raro ter um pargo luciano acima desse peso. Eles crescem até aos 85 kgs, tanto quanto há registos escritos e documentados.
Por isso mesmo, os equipamentos são zero grosso, porque não vale a pena pensar que se pode ceder um metro que seja.
A pesca feita por estas pessoas é algo de muito duro, violento, e pode causar lesões físicas permanentes.
Aqueles que pescam ao pica-pica em Portugal estão a salvo disso. É outro mundo...


Vítor Ganchinho


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2 Comentários

  1. Boa tarde Vítor

    Já tinha saudades (isto porque não conseguia, porque os artigos são sempre fantásticos) de ler excelentes artigos e esta partilha e um mundo "á parte".

    Ao ver o video fiquei sem palavras, nem sei como é possível pescar estes peixes manualmente !! Uau...

    Grande abraço.

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    Respostas
    1. Amigo Tozé, um grande abraço!


      Com este artigo quis passar algumas imagens de um mundo "alternativo", onde a pesca ganha uma dimensão que excede em muito aquilo a que chamamos pesca por cá.

      Não é melhor nem pior, apenas diferente.

      Na minha opinião, trata-se de um morticínio de peixe, mas é bom que se saiba que existe.
      Até para podermos comparar com aquilo que se faz por cá, que está felizmente a anos luz em termos de resultados finais, mas que também acontece.

      Quando saio ao mar e vejo barcos a lançar redes com centenas de metros e os vejo fechar os copos em baixo, sei que tudo aquilo que é vivo e estava dentro daquele perímetro, irá morrer. E vejo isso vezes demais....

      Na semana passada, estava a sair de madrugada para a pesca e estava a chegar um barco que faz isso na minha zona habitual de trabalho. Ao chegar ao local, umas duas horas depois dessa embarcação ter saído de lá ...não havia nem vivalma. Zero peixe.
      O peixe que é capturado com redes de copo não pode estar lá a seguir....

      Grande abraço

      Vitor

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