Existe uma ideia generalizada de que o mundo aquático é um meio fechado, onde impera o silêncio. Nada mais errado.
Na verdade, em ambiente marítimo, o som está em todo o lado e bem longe de ser tão discreto quanto possa pensar-se.
Desde logo por razões físicas: no mar, o som, grosso modo, propaga-se cerca de quatro vezes mais rápido que no ar.
Em termos técnicos, a velocidade de propagação do som no meio que nos envolve, o ar, é de apenas 331 metros/ segundo, mas no meio líquido ela foi determinada em 1435 metros/ segundo.
A diferença é enorme, e devia fazer pensar os pescadores que julgam ser indiferente produzir ou não ruídos, quer a bordo quer na pesca apeada.
Tenho amigos que, não obstante os meus avisos regulares, não conseguem evitar o ruído, e com isso acabam por irremediavelmente prejudicar a pesca a todos os que se encontram a bordo.
Os peixes mais velhos, mais experientes e sabidos, fazem aquilo que os levou precisamente a chegar a velhos: fecham a boca.
Neste ambiente de baixas profundidades, o barulho das ondas é quase sempre uma constante. |
Já aqui no blog foi explicada a diferença entre barulhos e ruídos, mas, porque há pelos vistos muitas dúvidas, aí vai de novo um sucinto resumo daquilo que todos deveríamos saber:
Podemos dividir o som em duas grandes variantes, o barulho e o ruído. Haverá quem pense tratar-se da mesma coisa, mas de facto não é assim.
Vejamos o que são barulhos: numa zona de águas rasas com agitação marítima, existem pedras a rolar, areia a ser deslocada, espuma, (água misturada com ar), o piar das aves marinhas, ondas a rebentar na areia da praia ou a esmagar-se contra as rochas da costa.
Todos estes barulhos fazem parte do seu quotidiano, e não são em si objecto de cuidados de maior. Os peixes não têm medo das vagas, da areia que levanta à passagem de cada onda. Nasceram ali.
Mesmo quando consideramos fundos barulhentos com muito calhau rolado, os quais em dias de tempestade emitem sons muito fortes por impacto de pedras contra pedras, não passam todavia de algo familiar, afinal de contas um som habitual para os nossos peixes.
Aqui, os peixes esperam tudo menos silêncio.
Logo, mesmo em situações de alta intensidade de som, ele em si não representa de todo uma ameaça, um perigo iminente.
Os peixes não temem o som da natureza só por si. Nasceram a ouvi-lo e isso faz parte integrante da sua existência.
Chamemos a isso “comportamento aprendido”.
Para os peixes que vivem perto desta fenda situada na parede sul do Cabo Espichel, o som do sopro de água torna-se algo natural. |
Quando passamos a um outro tipo de sons não naturais, os ruídos, falamos de algo completamente diferente e o peixe não os ignora.
Grosso modo, nenhum peixe gosta de ruído. Vejam o que acontece quando batemos no vidro de um aquário, é difícil que os peixes permaneçam calmos.
Tudo aquilo que altere o nível de sons subaquáticos naturais, é considerado ruído.
Uma cana que bate contra o fundo do barco, o impacto de uma chumbada, o arrastar de uma geleira, o ligar de um motor, a queda de uma âncora, o distender da sua corrente metálica no fundo, uma garrafa de cerveja que cai no convés, etc, isso são ruídos.
O som de um par de elásticos de uma arma de caça submarina é obviamente um ruído e constitui uma ameaça de perigo iminente.
Em pesqueiros baixos, o próprio som da nossa voz é um ruído. Quando falamos, até uma determinada distância e até uma dada profundidade, esse som pode ser ouvido. E em determinadas circunstâncias vai sempre ser considerado como uma ameaça.
Para os peixes, o ruído é algo a que prestam muita atenção pois em termos gerais, a sua vida pode depender da interpretação que dele fizerem.
Não queria complicar-vos o entendimento deste aspecto, mas devem ter em conta que nem tudo o que é ruído é potencialmente considerado pelo peixe como uma ameaça concreta. Dou-vos um exemplo:
Para peixes que nascem e fazem a sua vida junto a um ancoradouro de barcos de uma cidade, o ruído dos motores, a atracagem de barcos que chocam as amuras contra a muralha, os gritos das pessoas, as buzinas dos carros, fazem parte da sua vida.
Aprendem com o tempo a desvalorizar e não alteram o seu comportamento por isso. Pese embora tendo como princípio um som não natural, é algo interiorizado pelo peixe como sendo parte integrante da sua rotina diária.
Ainda que possa eventualmente ser muito forte, um ruído constante e repetitivo pode ser tolerado.
Por isso podemos pois incluir este sentido de tolerância a sons, na verdade ruídos, na categoria de “comportamento aprendido”.
Mas depende muito da localização geográfica em que é produzido. É bom que tenham em atenção o ruído de redes largadas por uma traineira ao largo, porque aqueles que não levam a sério a ameaça ficam com a sua vida comprometida.
Ressalta pois destes parágrafos anteriores a diferença entre aquilo que pode ou não representar um aviso de alerta, sendo que de um modo geral os barulhos naturais, ainda que muito fortes, são tomados como algo não representativo de perigo, enquanto que os ruídos, todo o tipo de sons não produzidos na natureza, por fracos e quase inaudíveis que sejam, podem quase sempre constituir uma potencial ameaça. E isto traz-nos a um aspecto curioso desta análise: que tipo de sons podem ser desvalorizados, quais os sons que repelem ou assustam o peixe? E será que alguns sons podem atraí-los?
Que grau de intensidade de som pode afinal ser detectado pelos peixes? Pode o ruído de um motor de uma embarcação de pesca ser ignorado?
Mais uma vez aqui, uma zona de rebentação de mar, o barulho é uma constante. |
Voltemos aos nossos robalos.
Vamos agora tentar perceber até que ponto podemos interagir com os peixes sem que aconteça o pior: a sua fuga.
Na verdade, eles nem têm de fugir de nós, basta-lhes não abrir a boca, aquilo que designamos de “picar”. O efeito imediato é que o nosso propósito de os enganarmos levando-os a morder uma isca fica irremediavelmente comprometido.
Como funcionam os ouvidos deles? De que forma conseguem ”ouvir” se nem sequer têm ..orelhas?
Os peixes percebem o som produzido (quer dentro quer fora de água) através de dois órgãos sensoriais. O primeiro é um conjunto de estruturas ósseas chamadas otólitos, o qual existe nos seus ouvidos internos.
O outro órgão é chamado de “linha lateral”, a qual que corre ao longo de cada lado do corpo do peixe, desde os opérculos até o pedúnculo caudal. Digamos que são dois sistemas diferentes, mas quem trabalham em estreita cooperação.
De modo geral, os peixes usam os ouvidos internos para sentir sons à distância, algo que se passa longe de si. Devemos ter em consideração que eles, tal como nós, vivemos num mundo tridimensional, em que há sons que chegam de baixo, de cima, dos lados.
O outro sistema auditivo é algo a que nos iremos referir no próximo número, as linhas laterais, e que são muito mais que apenas algo que capta sons, conforme iremos ver.
Esta linha lateral entra em acção em circunstâncias de muito maior proximidade ao peixe, e serve para muito mais que “ouvir”.
O grau de dependência dos sistemas auditivos varia de acordo com a espécie, e com o nível de som ambiente específico de cada corpo de água. É natural que um peixe pelágico, o qual vive em alto mar, longe de qualquer plataforma continental, tenha menos necessidade de estar atento ao som ambiente que o rodeia, e que fisiologicamente possa até ter menos sensibilidade auditiva que um peixe que vive encostado a um local de águas rasas, onde os perigos são inúmeros. O grau de sensibilidade não é igual.
De alguma forma, o som pode auxiliar na detecção de predadores, de cardumes de outros peixes da mesma espécie, pode até ajudar na reprodução. Vejam o caso das corvinas, em que o ruído de baixas frequências que emitem é captado por outras que evoluem na mesma zona, e que dessa forma permite que se possam juntar. Não tivessem as corvinas um sistema de detecção de sons tão desenvolvido, otólitos tão grandes e eficazes, e teriam mais dificuldade em se reagrupar para a reprodução.
Tivessem elas otólitos do tamanho de um atum do largo, um simples grão de arroz, e não poderiam ouvir o chamamento das outras.
A especialização advém da necessidade: enquanto o atum depende essencialmente da sua vista, por viver em águas abertas, azuis, claras, limpas, a corvina frequenta os lamacentos estuários dos rios, logo águas muito tapadas, sem visibilidade. Aí, e à falta do sentido da visão, o som é necessário.
Os detectores de som, chamados de otólitos, não são mais que uma concentração de camadas de carbonato de cálcio, diríamos em linguagem comum uma “pedra” incrustada no ouvido interno que lhes permite detectar sons, vibrações de som.
Podemos defini-los como peças de aragonite localizadas no neuro crânio dos peixes.
Vejam as imagens:
Dois exemplos de otólitos de corvina. |
Todas as espécies de peixes empregam dois sistemas auditivos. As estruturas ósseas nos ouvidos internos, chamadas de otólitos, ouvem sons à distância, enquanto a linha lateral sente vibrações, sonoras ou físicas, que lhe estão próximas.
E que é isso de otólitos? Não são mais que uma acumulação de camadas de carbonato de cálcio e de matriz gelatinosa que ocorre ao longo da vida de um peixe. A taxa de acumulação anual varia, normalmente com crescimento menor no inverno e maior no verão, o que resulta no surgimento de algo parecido com anéis, como as árvores têm no seu tronco.
O carbonato de cálcio e outros minerais que são depositados nos otólitos, vêm de duas fontes: da absorção da água em que o peixe nada e do alimento diariamente ingerido.
Assim, como a disponibilidade de alimento e o metabolismo variam ao longo do ano, por conta da sazonalidade ambiental, mais ou menos quantidade de alimento disponível, formam-se anéis de crescimento nos otólitos.
Esses anéis são por nós identificados para determinar a idade dos peixes. Dado que, por exemplo, os robalos acabam por viver entre estuários, lagoas costeiras, e a proximidade da costa nacional, através da concentração de carbonato de cálcio é possível determinar não só a sua idade, mas também vestígios ambientais deixados nos otólitos e que funcionam como “marcadores químicos”. É possível rastrear quais as áreas marinhas utilizadas pelo peixe e em qual estágio de vida, se juvenil ou adulta, por exemplo.
Os barcos de pesca produzem uma quantidade incrível de ruído. É muito mais que aquilo que vocês podem pensar!
Há a vibração do motor, o ruído do escape, mas há muito mais: as ondas de pressão geradas pelos hélices giratórios, as esteiras de espuma, as vagas que batem no casco, etc, etc.
Alguns peixes podem ouvir sons na faixa de frequência de 100 a 800 hertz. Caso uma embarcação produza um ruído repentino de baixa frequência, por exemplo um motor que é ligado, ou desligado, isso pode surpreender o peixe e levá-lo a ser cauteloso. Em águas turvas perto da costa, onde a visibilidade é fraca, ser capaz de ouvir bem torna-se uma vantagem ainda maior do que no mar, desde logo para evitar perigos.
Sendo um mundo barulhento, para que um peixe ouça alguma coisa, o nível do ruído deve ultrapassar o som de fundo do meio subaquático. No caso de pessoas que fazem pesca ao robalo em pesqueiros baixos, junto à costa, pode até nem ser dramático terem os motores ligados.
A audição dos peixes concentra-se sobretudo em sons de baixa frequência abaixo de 1.000 hertz. Os motores fora de bordo quando em funcionamento emitem muitos os seus sons em frequências superiores na faixa de 1.000 a 5.000 hertz e parte deste ruído é emitido fora de água.
Por isso é possível que os peixes não ouçam convenientemente a totalidade do ruído do motor fora de bordo. Os Inboards, por outro lado, emitem sons em frequências abaixo de 1.000 hertz – dentro do alcance dos sentidos auditivos dos peixes e por isso serão bem mais prejudiciais.
Não será por acaso que embarcações mais pequenas, por exemplo os kayaks, podem ser muito mais eficazes em águas rasas que um barco de grande porte. Desde logo porque o ruído da água que bate no casco é bem menor.
Um assunto muito interessante é o que está relacionado com os novos motores eléctricos, os Minn kota, ou o Kraken, da Garmin, o meu favorito, e aquele que tenho no meu barco. Alguns pescadores acreditam que estes motores elétricos são silenciosos debaixo de água.
No entanto, isto é um mito. De facto produzem ruído e isso resulta em grande parte da onda de pressão gerada pelo hélice em rotação. No entanto, o som tem muito menos amplitude e está numa faixa de frequência mais alta do que outros motores a combustão interna.
O conceito de evitar ruídos altos durante a pesca ajuda-nos a pescar. Se, por alguma razão tivermos mesmo de produzir ruídos, e o exemplo de um barco que trabalha perto da rebentação ao robalo é um desses casos pois não é conveniente desligar o motor no caso de haver ondas altas que obriguem a uma fuga rápida, então devemos certificar-nos de que o ruído deve ser constante. O ruído constante inicialmente incomoda os peixes, mas uma vez que eles se habituem a ele, isso não parece incomodá-los de forma persistente. Neste caso, o ruído constante passa a fazer parte do som ambiente.
Minimizar a conversa durante a pesca em águas rasas pode aumentar as nossas possibilidades de sucesso.
Da mesma forma, emitir ruídos que atravessam o casco do barco e penetram na água não nos pode ajudar. Eu luto com os meus amigos para que não arrastem as geleiras do peixe, quantas vezes ingloriamente.
Quando mergulho e estou a dez ou quinze metros de fundo, ouço as pessoas que estão no barco a falar, ouço os pés a bater no barco, o que me leva a garantir que também os peixes o podem fazer. Em águas rasas, manter a comunicação por voz em tons baixos ajuda-nos.
Como princípio, qualquer som repentino gerado pelo homem tem o potencial de assustar os peixes. Sons prolongados, constantes, tendem a ser desvalorizados ao fim de algum tempo.
Ok?
Vítor Ganchinho
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