ENSINAMO-LOS A NÃO PICAREM...? - CAP II

Há pesqueiros que são de tal forma conhecidos que dificilmente passam mais do que alguns dias sem serem pescados. O que quer dizer que os cardumes de peixe residentes terão contactos habituais, rotineiros, com toda a sorte de amostras/ iscos/ jigs que nós resolvemos lançar-lhes.
A frequência com que passamos as nossas amostras num determinado pesqueiro, junto a um determinado peixe, condiciona certamente a atitude deste perante elas. Mais grave ainda quando a isso se junta o facto de esse peixe ter sido capturado, desferrado e libertado enquanto juvenil.
Pode dar-se até o caso de um peixe adulto ser capturado e libertado. A dado momento da sua vida, um peixe sofre o trauma de ser arrastado até junto de um pescador, é agarrado à mão e sofre fisicamente a retirada do anzol. Pode esse peixe voltar a acreditar?
É minha convicção que durante esse processo de captura e solta a associação negativa desse peixe ao acto de pesca é reforçada. E isso invariavelmente irá ter consequências no futuro comportamento dele. E por tabela, por multiplicação de ocorrências, de desconfiança generalizada, da própria espécie de peixe em termos globais. Não é necessário que todos os peixes sejam vitimas de um anzol, basta que estejam por perto quando isso acontece a outros.
Neste aspecto, o legado genético atribuido a peixes de cardume não será o mesmo que aquele que é disponibilizado a peixes que fazem a sua vida de forma solitária. Um sargo é uma coisa, um safio é outra.
E é exactamente sobre esse acto que me proponho escrever hoje, o registo desse incidente de captura visto pelo lado do peixe. De que forma ficam afectados? Aprendem com isso?
São eles capazes de memorizar esse acto e tirar daí ensinamentos?

Pesquei este peixe-espada com 2.05 mts ao largo da Ilha de Sta Maria, nos Açores. Este peixe terá feito toda a sua vida sem ver ninguém…

Terão eles consciência de que aquelas linhas e anzóis, as amostras, os jigs, são realmente perigosos?
À primeira vista, o que podemos presumir como natural é que esses peixes passem a ser muito mais cautelosos perante a possibilidade de investirem de novo a uma amostra.
Se não podemos medir com exactidão o grau de desconfiança de um peixe, podemos pelo menos falar com os marítimos mais antigos, aqueles que pescaram a mesma espécie de peixe há dezenas de anos atrás e deles guardam memória.
E os nossos pescadores de antanho são unânimes em dizer que havia uma maior facilidade em convencer os peixes a morder.
Também é um facto de que a quantidade de peixe era superior e por isso as possibilidades de contacto e sucesso seriam maiores.
Os “encontros imediatos” com bons exemplares, peixe adulto, eram muito mais frequentes, segundo me dizem. E, não obstante os meios rudimentares de que dispunham, as boas pescarias sucediam-se.
O argumento é bem construído e muito persuasivo. À primeira vista quase faz sentido que tenha sido assim.
No entanto, não estou de todo convencido de que seja sempre e apenas esta a justificação. Mais peixe sim, mas guardo algum cepticismo quanto aos relatos, quantas vezes empolados, de memórias longínquas de pescarias de “centenas de quilos”.
Prefiro sim tentar entender o fenómeno à luz de explicações científicas, certamente mais exactas. O que se terá passado durante as últimas décadas que possa ter levado, por exemplo os robalos, a uma maior inibição de atacarem as amostras?
Os peixes aprendem?....

Goraz de 2,5 kgs, com sotaque açoriano. Outra espécie que faz a sua vida adulta a mais de 300 metros de profundidade.

Pelas pesquisas que fiz antes de ter a coragem de escrever este “potencialmente polémico” artigo, salta-me à vista o saudosismo do “no meu tempo é que era”, sobram peixes a relatos que misturam as alegrias de factos vividos com pescas miraculosas …apenas desejadas.
Acredito que tenhamos hoje peixes mais cautelosos, mais sabedores daquilo que pode acontecer se se atreverem a morder aquele “pequeno peixe”. E isso leva-nos para a questão da repetição do uso da mesma amostra, do mesmo tipo de amostra, do mesmo efeito de amostra.
Por isso eu consigo muitas vezes resultados ao utilizar passeantes de superfície em zonas onde as ditosas “amostras com pala” já não conseguem ataques. Os peixes estão saturados delas!
Mudar a amostra significa mudar muito mais que alterar o estimulo repetitivo a que os peixes já não respondem, é ir à procura de uma solicitação nova, algo que surpreenda o peixe e o leve a acreditar que “aquilo” já não é falso, já não é uma amostra comum, mas sim um peixe real.
Mesmo tratando-se de um peixe adulto e com experiências negativas prévias, uma técnica nova, uma amostra nova, com um efeito novo, podem ser suficientes para o convencer, para que “acredite”.
Neste caso tratamos de mudar o padrão, a relação causa / efeito de algo já conhecido. Isso pode ser interessante para quem pesca em locais muito acessíveis, conhecidos, onde existe a possibilidade de muitos dos peixes existentes já terem sido pescados e libertados em idade juvenil.
Quero que fiquem cientes de eu liberto, e continuarei a libertar, peixes por mim capturados que não correspondam ao padrão que procuro. E que, a talhe de foice, é bem superior ao estipulado pelas medidas mínimas legais.
Liberto por convicção! Liberto por acreditar que essa é a forma, a única forma, de poder actuar sobre vicissitudes de capturas que não desejo. Não posso determinar que tipo de peixes irão morder as minhas amostras, mas posso decidir se fico com eles, ou se os devolvo ao mar.

Peixes pelágicos, viajantes do azul, não encontram pessoas facilmente. Este pequeno tunídeo pesquei-o no Senegal. 

É verdade que há espécies mais predispostas a correr o risco. E condições de pesca diferentes, que facilitam essa pesca. Mas poderíamos analisar a situação dos peixes de profundidade, por exemplo.
Esses, se à primeira vista serão sempre “virgens” de contactos, podem até não o ser. Pode acontecer que o local, pese a sua grande profundidade, e a distância a que os peixes vivem da superfície, seja muito pescado, eventualmente todos os dias.
Para os meus leitores e amigos dos Açores, vejam o caso da Pedra Nova, em S. Miguel, que raramente não tem barcos em cima. Embora a profundidade seja alguma, o contacto com aparelhos de pesca é diário. E isso seguramente irá retrair a “fogosidade” dos exemplares mais velhos…
Um peixe, tomado na sua individualidade, pode ser mais fácil ou mais difícil de pescar, de acordo com a experiência prévia que já teve.
Tenho para mim que os fáceis pagam quase sempre com a vida a sua temeridade. Não esqueçam que a maior parte dos pescadores portugueses pesca para comer. Peixe na mão igual a peixe na geleira.
O que significa que aqueles que restam serão sempre os mais difíceis, os resistentes, aqueles que não acreditaram. Ou que em pequenos tiveram a sorte de ser libertados. Ou que estavam ao lado de um outro que resolveu arriscar.
Aos nossos olhos, esses são os peixes “espertos”, aqueles que aparentemente serão impossíveis de capturar.
Vejam o caso de um sargo grande, velho, num baixio, com água limpa, a ver o pescador lançar sobre si um isco. As probabilidades de sucesso serão ínfimas, reduzidas. Dificilmente esse sargo não irá esgueirar-se esbaforido para o fundo e desaparecer de vista.
Mas esse mesmo peixe, com a mesma isca, mas num ambiente de espuma, de água revolta, é bem mais fácil de convencer. Pese a sua astúcia e conhecimento sejam os mesmos, é perfeitamente possível pescá-lo. O mesmo peixe.
O que muda então? O ambiente de pesca, as características do pesqueiro, as condições em que esse peixe é tentado.
E isso já torna a questão francamente interessante. Graduar a facilidade de captura em função do meio ambiente envolvente já tem que se diga...
Podemos conjecturar e teorizar sobre a facilidade de convencermos os peixes realmente difíceis a picar. Normalmente analisamos a questão pela rama, atendendo à espécie no seu todo.
Raramente consideramos os peixes enquanto seres individuais com ou sem más experiências anteriores. Será igual tentar um peixe que vive numa zona remota, não ou pouco pescada, e que por força disso nunca foi tentado por uma amostra, e outro que vive numa zona massacrada diariamente pelos pescadores de linha?
É exactamente este factor que irá determinar que esse peixe esteja predisposto a ser mais fácil ou mais difícil de capturar.
Por outras palavras, a questão que se coloca é se um peixe que nunca viu uma amostra artificial antes – e que por isso não associa qualquer factor negativo a ela – será mais fácil de capturar do que outro que cresceu a ver outros a serem pescados por morderem amostras.

Algumas espécies de peixe, por exemplo este cherne, fazem a sua vida adulta bem longe da superfície, o que os afasta de encontros com seres humanos.

Encontrei relatos que datam de 1930, os quais confirmam que já houve gente que se interessou por este tema, e fez inúmeras experiências. Entendam estes trabalhos como algo efectuado num lago, em ambiente controlado, com peixes marcados e numerados.
Um dos trabalhos que li reportava-se a um estudo originalmente projetado para verificar se a captura e a soltura levariam a taxas de captura mais baixas devido à “repulsa aprendida do anzol” por achigãs.
O que eles mostraram foi algo inesperado. Durante o período de estudo de cinco anos, durante o qual o mesmo achigã foi capturado regularmente, houve uma grande variação no número de vezes e a insistência, a perseverança com que esse peixe, enquanto entidade individual, se lançou a uma amostra.
O peixe pode tocar na amostra, e por diferentes razões. Pode ter fome e atacar para comer, mas também pode fazê-lo para afastar intrusos do seu local de postura. Ou pode fazê-lo para impedir a permanência de concorrentes numa determinada zona de alimentação.
Neste trabalho, os biólogos envolvidos relataram que um desses achigãs foi capturado quinze vezes num ano, o que é um absurdo. Por outro lado, e no mesmo lago, houve peixes que nunca foram capturados. Em cinco anos, alguns peixes da mesma espécie, com o mesmo peso e tamanho, nunca investiram sobre a amostra. Dado o reduzido nível de pesca, a acessibilidade restrita ao lago e o facto de estes peixes não terem tido experiência inicial de pesca antes do início da experiência, isto foi surpreendente.
O resultado fez estes biólogos pensarem. Do ponto de vista da gestão das pescas (e na opinião de alguns pescadores) o facto de existirem peixes difíceis, ou mesmo impossíveis de capturar à partida não é necessariamente bom. Isso torna esses peixes inacessíveis aos pescadores.
Mas por outro lado, a perpetuação da espécie estará assim garantida.

Vou no próximo número continuar a desenvolver este tema, e esta situação em concreto, porque ela é bem interessante e pode ajudar-vos a entender esta questão dos peixes…”escaldados”.
Se o texto não se alongar falar-vos-ei de uma corrente de opinião contrária, a que defende que os peixes não têm capacidade de memorizar e por isso não podem guardar experiências negativas.
O tema promete...


Vítor Ganchinho


😀 A sua opinião conta! Clique abaixo se gostou (ou não) deste artigo e deixe o seu comentário.

Artigo Anterior Próximo Artigo

PUB

PUB

نموذج الاتصال