LER O FUTURO NA PALMA DA MÃO...

Todos nós temos a ambição de morrer jovens, o mais tarde possível.
Porém, o tempo, esse tirano que só quer saber da inexorável lei da vida, desgasta-nos, retira-nos forças e, nestas coisas de pesca jigging profunda e pesada, cada dia a mais no nosso corpo é um dia a menos na coragem que temos para enfrentar monstros que pesam uma enormidade.
E fazem força a condizer…
Por isso procuro aproveitar a energia que me resta para viver as experiências com que sempre sonhei. Pescar com o Luís Ramos é, para qualquer pescador e eu não sou excepção, um sonho, uma honra, um enorme privilégio.
Quando o convite dele surgiu fiquei feliz. Após desligar a chamada levantei os meus braços no ar e toquei com as mãos …no céu. Claro que queria ir!
Diria mesmo: desde a descoberta da roda e do pão fatiado que a humanidade não tinha uma ideia tão boa.
Benguela, aí vou eu!

No fim do arco-íris está sempre um pote cheio de moedas de ouro. Para mim bastava-me que houvesse peixe…

A ansiedade apoderou-se de mim e o tempo passou a rolar lento, devagar, como se subitamente os ponteiros do relógio insistissem em navegar à vela… sem vento, entendem?
Um mês e meio antes já tinha a mala feita.
É verdade que estas expedições de pesca não se preparam no dia, mas a ansiedade de pescar peixes do meu tamanho fez-me exagerar.
Também não ajudaram as fotos que dele recebi nas semanas anteriores: garoupas gigantescas, a confirmar que tudo estava no ponto.
Podemos sentir inveja dos peixes que ele pesca mas isso não é grave. Nada que duas penitentes ave-marias e três padres-nossos não resolvam.
Fiz trabalho físico com o meu personal trainer a visar o enorme esforço que implica puxar para cima um daqueles mastodontes castanhos, de boca aberta.
É impressionante a chegada à superfície de uma garoupa com peso.

As águas de Benguela escondem muitos segredos…

Eu, mártir da pesca, me confesso: quando saio a pescar com o Luís, quando ando a tamborilar de pesqueiro em pesqueiro no incrível barco “Incrível“, pese embora saiba que tudo pode acontecer, nunca me sinto verdadeiramente preparado.
Vocês já sentiram isso a ver filmes de terror!
Sabemos que vai acontecer qualquer coisa, a música sobe paulatinamente de volume, vai-nos preparando para o drama, a tragédia iminente, a pressão sanguínea aumenta, queremos enterrar-nos mentalmente em qualquer buraco que nos esconda, cravamos as unhas dos dedos no fundo da cadeira, sustemos a respiração e…
Por mais que queiramos estar de sobreaviso, o coração salta sempre do peito.
É um desvario! A leitura que devem fazer disto é que a pessoa anda a pular de pedra em pedra, de ataque em ataque cardíaco.
Os peixes são muito grandes e surgem quando e de onde menos se espera. De repente temos um bicho maior que nós a puxar o nosso equipamento para baixo.
Já se sabe, nós temos estima pelas coisinhas, os nossos equipamentos, as nossas canas, os nossos carretos, e não os largamos ao primeiro esticão.
E é aí que tudo se complica, a cana dobra, a linha sai, o coração dá pulos, os pulmões aflitos começam a arfar e os olhos reviram nas órbitas. Isto é ou não é o princípio de qualquer ataque de epilepsia?!
Bem à saúde não nos pode fazer.
Em termos práticos não estará muito longe do roubo por esticão feito nas ruas recorrendo a uma motorizada.
A diferença é que nós estamos previamente cientes de que, enviando um jig para o fundo, tudo pode acontecer. As velhotas que são assaltadas, essas …nem tanto.

Pequena garoupa feita com um jig assimétrico Daiwa que adquiri no Japão. Utilizam-se jigs “glow”, com brilho, em águas mais escuras.

Desta vez, não obstante todas as naturais expectativas, as coisas não se iriam passar como habitualmente.
Por razões que escapam mesmo a quem faz da pesca o seu trabalho, não havia peixe.
Para norte, para sul, em frente ao Lobito, a ausência de peixe era evidente. O esforço feito, (em 3 dias foram feitas 210 milhas de mar…), as inúmeras horas de trabalho de pesquisa, não foram produtivas. E essa é a prova de que as correntes, a temperatura das águas, a existência de condições para que a comedia possa permanecer são determinantes na presença, ou não, dos grandes predadores.
Nos sítios onde já fomos tão felizes, blocos de pedra com abrigos escuros para garoupas, a regra foi a de nada haver. Custa a crer aquele deserto de possibilidades em zonas onde a norma é haver mesmo muito peixe.
No ecrã do GPS desfilaram durante alguns dias pontos com marcas indeléveis de capturas monstruosas. E desta vez, ….nada.

Não posso revelar mais sobre os seus pontos de GPS. Primeiro porque não seria justo para quem em mim tanto confiou, segundo porque não os tenho nem gostaria de ter, e por fim porque a seguir deixaria de ser um segredo restrito, logo teria de aniquilar os meus queridos leitores. E quem é que tão diligentemente iria ao fim do texto colocar os odiosos e deprimentes polegarzinhos a vermelho?!

A agregação de garoupas numa determinada zona é potenciada pela presença de isca miúda.
Elas seguem os grandes cardumes de peixe forragem, e por isso pode acontecer que num determinado momento se assista a uma inusitada concentração destes gigantescos peixes.
A isca, de qualquer tipo mas com especial incidência nas “grelhas” e carapaus miúdos é sem dúvida a força gravitacional que garante a presença dos predadores.
Não preciso de vos dizer que isso é um privilégio para quem anda por ali a lançar jigs ao fundo.
E se, tendo em consideração aquilo que é dito acima, e por obra do acaso calha nos encontrarmos no sítio certo à hora certa, vários ataques podem ocorrer numa determinada zona, e até no mesmo spot.
Há garoupas que se juntam em cardume, porventura por razões reprodutivas ou de coincidência opcional de deslocação, e que podem proporcionar isso.

As pequenas corvinas atacavam em cardume, mas ainda assim, poucas. 

Se há alguém que pode encontrar esses peixes é o Luís. Por ser profissional de pesca à linha, por passar a pente fino aquelas águas todos os dias, por ali fazer a sua vida.
Numa análise fria, desapaixonada, de alguém que está fora e pode meditar sobre aquilo que ele passa para encontrar peixe todos os dias, diria que a um conjunto de variáveis enorme, (o peixe na sua procura de alimento pode movimentar-se para sul ou para norte, mais ou menos profundo, logo mais próximo ou mais longe da costa), ele responde de forma completamente ilógica, não procurando os peixes que quer efectivamente pescar, o seu objetivo, aquilo com que faz dinheiro para a casa, mas sim deixando que as grandes garoupas se deixem encontrar.
Ou seja, o que ele faz é procurar aquilo que elas comem, e que é bem mais fácil de achar na sonda, as grandes manchas de comedia, de peixe miúdo. Visão de profissional.
Neste caso há uma via indireta, é o problema em si que lhe diz como ele próprio se resolve, ele apenas mantém os olhos atentos no ecrã da sua sonda. E desta vez, a comedia não estava lá.
Detectámos alguns cardumes de carapau muito miúdo, “isca fina” como ele lhes chama, e pouco mais. Mostrou-me na sonda enormes manchas de camarão, mas esse não é o alimento dos gigantes que procurávamos.
A variação de temperaturas das águas, com alternâncias de 5 a 6ºC em poucas horas, em nada ajudou.


Nós pescadores temos sorte porque podemos sempre acreditar, não há noites sem madrugadas promissoras.
Acreditamos sempre que a seguir é que vai ser porque ser pescador é isso. É ser crente.
Teremos sempre a crença de um futuro bom na ponta dos nossos dedos, dos nossos anzóis.
Sempre que quisermos sonhar com um sol radioso e pescarias mirabolantes podemos fazê-lo.
Teremos sempre Paris e teremos sempre um fantástico amanhã para lançar linhas e iscos pelo que o futuro da pesca para nós estará sempre assegurado.
Já para o Luís, enquanto profissional, o seu trabalho, na sua essência, deve parecer-lhe algo ilógico.
Digo isto já que à aplicação de um método, a procura do peixe nos locais onde já pescou peixe, (e por isso tem alguns milhares de pontos marcados na sua carta GPS, logo com uma lógica precisa), pode não corresponder qualquer captura.
Isso traz ao seu trabalho uma aura de resultados imprevisíveis e um sentido aleatório que ele certamente dispensaria.
Mas a pesca é isso mesmo, o incerto para lá do lógico, a inexistência de caminhos mais curtos.
De nada serve tentar ler o futuro na palma da mão, não é aí que a informação se lê. 
É na sonda que se lê a possível presença, ou não, dos peixes que procuramos.

Se é por isso que aquele destino deixa de ser interessante? Nem por sombras!
Eu voltava já hoje...


Vítor Ganchinho


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6 Comentários

  1. Boas Vitor.
    Infelizmente essa situação que relatou passa-se em outras paragens também. O Luis Ramos diz que esta situação é normal, existem períodos em que o peixe "desaparece", mas é algo que dá que pensar. Para onde os peixes foram? No mar estão de certeza!😁😇

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    1. Luis, o peixe nunca desaparece.
      Eu acredito que aquilo que muda são as premissas que nos permitem capturar peixe.
      Se nós fizermos spinning ao robalo em pesqueiros baixos, a dada altura as águas arrefecem, gelam à superfície, e a comedia afunda porque não tem corpo para suportar as baixas temperaturas, vai à procura das termoclinas onde se pode manter mais quente e espera.

      Entretanto, o pescador de robalos diz que os robalos desapareceram, porque não tem toques. Eles apenas seguiram a comida, porque não podem estar muito tempo sem ela.
      Por isso se pescam robalos com jig a 120 mts de fundo em Sines no inverno, certo?

      Aquilo que muda são as condições de pesca, o peixe não se evapora.
      Nem cresce de um dia para o outro...
      Apenas não coincidem as possibilidades das técnicas utilizadas com a disponibilidade de peixe nos locais habituais.
      Se o peixe muda, se segue as correntes, ou se afunda e vai para o largo, deixamos de o ter disponível onde estamos habituados a tê-lo.


      Siga a sequência de artigos e vai ver que mesmo assim fizemos peixes muito bonitos.
      Para além disso, estar ao lado do Luis Ramos a pescar, para além de ser um privilégio, é também uma forma rápida de aprender coisas.



      Abraço
      Vitor



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  2. Boa tarde grande Vítor. Podiamos nem apanhar um peixe a semana inteira que nos iamos divertir e rir à grande como sempre meu amigo. Infelizmente as condições prejudicaram e muito a nossa semana de mar e apesar de ser normal em duas alturas do ano, a verdade é que nem foi na altura que costuma ser (fim do verão e início de Inverno) e nem é normal durar tanto tempo.
    Mas faz parte da natureza e quando assim é não existe nada a fazer.
    Venham os próximos que é sempre um prazer enorme e uma alegria poder ler os seus artigos.

    Um enorme abraço

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    1. Não estou tão seguro que os próximos artigos possam ser bem recebidos desse lado, sobretudo um tal de artigo relacionado com uma sandes de chouriço....

      Agora a sério: acho que escrevi nesta série um artigo que, para mim, na minha modesta opinião, pode ser considerado como um dos melhores que já escrevi em toda a minha vida. É curto, mas tem muita substância....
      Vou deixar sair esta sequência e ver se alguém nota algo de especial e se comentam.

      Para mim foi um desafio lançar letras para um papel em branco, sem ter o suporte de peixes de grande tamanho, que de facto não apareceram. Mas sobre monstros qualquer um escreve, bem mais difícil é fazê-lo tendo como base a captura de miudezas.

      Luis, mais uma vez obrigado por tudo, foi uma honra e um privilégio ter tido a possibilidade de ir a Angola pescar a bordo do incrível "Incrível"!

      Abraço
      Vitor



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  3. Boa tarde Vitor.
    Tem toda a razão.
    Eu estive a pescar em profundidades de 350/500mt e infelizmente este ano aconteceu essa situação. Só se conseguio pescar algum peixe em periodos muito curtos de cerca 30 minutos em que a corrente permitia. Felizmente ainda consegui alguns exemplares.
    Obrigado pela partilha do conhecimento.

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    Respostas
    1. Luis Borges, nós aprendemos todos uns com os outros, com a troca de experiências, com a partilha de momentos vividos.
      Está para nascer o primeiro autodidata que consegue fazer tudo sozinho, sem a influência de ninguém a seu lado.

      Não perca os próximos artigos, há um deles que eu acho que fui muito feliz e que saiu bem. Não o vou identificar, vou sim esperar que as pessoas se manifestem, ....se gostarem. Vamos ver.
      Eu adorei escrever aquilo e tenho a certeza de que o Luis Ramos o vai conseguir identificar.

      Abraço
      Vitor



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