Bom dia Rodrigo,
Muito obrigado por nos ter contactado sobre este assunto. Tenho muito gosto em lhe responder.
Diz-me que costuma pescar dentro do Sado. Não é o local mais fácil para alguém começar, porque infelizmente o Sado hoje em dia já não é o rio que foi. Não sei se leu o meu artigo anterior: “Pessoas e mãos: a pesca em Setúbal nos anos 30”, onde eu abordava alguns detalhes daquilo que era o Sado há muitos anos. Vale a pena Rodrigo, se não leu, retroceder ao dia 07.05.20. Clicar no link abaixo:
Nessa altura, havia pescadas dentro do Sado, muitos pargos, raias, santolas, etc. Agora também há peixes lá dentro que o irão surpreender! Posso dizer-lhe aqui algo sobre isso, se achar interessante. Vamos lá então:
O Sado é um rio com um estuário largo, e que dá alguma folga ao peixe que quer entrar para desovar. Não sei se tem a noção de que, perto da Restinga, grosso modo não longe da Secil Betão, o Sado tem 43 metros de fundo. Depois o rio divide-se em dois canais, um que vai junto à Sapec, Portucel, e que é relativamente baixo. É neste canal que passam os navios de carga que carregam os carros da Auto-Europa, por exemplo. O outro canal que entra à direita, do lado de Tróia, e que terá cerca de 12 metros de fundo, é o canal utilizado pelos petroleiros que vão fazer reparações à Lisnave. Porque o Sado não tem muita profundidade dentro do estuário, esses navios têm limitações de operacionalidade, e são obrigados a sair do estaleiro naval quando a maré está alta. Se saírem com a maré vazia, encalham e são obrigados a esperar pela nova enchente. Daí a necessidade de haver serviços de guia, por parte dos rebocadores que costuma ver dentro do rio, para que possam passar nos dois canais sem ter problemas. Mas se os navios passam, também os peixes passam.
Há peixe que entra no Sado para desovar, e a razão é a seguinte: o peixe precisa de garantir à sua descendência condições de alimentação e segurança, para que possa crescer. Os alevins encontram no Sado as condições ideais para fazer um crescimento rápido. O fitoplâncton cresce depressa porque há um caldo de condições que o propicia: muita matéria orgânica trazida pelo aluvião dos ribeiros, a água que sai da barragem de Sta Susana em Alcácer, etc. São águas baixas que aquecem rápido com o sol, marés regulares que deslocam grandes massas de água, oxigenando as algas, amenizando as temperaturas quando lá fora a água do mar está mais fria. Os peixes que eclodem no Sado estão no sítio certo. Há infelizmente problemas que não ajudam nem um pouco: As descargas de produtos químicos das fábricas matam mais peixe que qualquer arte ou pescador. Mais que isso, matam-no quando ele ainda não pode escapar: matam-no nas ovas. Depois, temos as redes de arrasto de malha fina. Sei de gente que arrasta na zona da Caldeira com redes mosquiteiras e mata milhares de peixes para conseguir três ou quatro sargos de palmo. Puxam o peixe para a praia e escolhem aquilo que é comestível, deixando a morrer milhares de pequenos peixes com 1 ou 2 cm. Sei de gente que pesca na zona da Carrasqueira douradas com 12 cm de comprimento e dizem que estão a pescar à dourada!....e fazem o mesmo aos robalinhos pequeninos.
No fim de tudo, aquilo que deveria ser o grande abastecedor de peixe miúdo para cobrir as pedras junto a Setúbal, sofre por acção humana um desbaste enorme. Mas ainda assim, continua a haver peixe criado dentro do rio. Aquilo que gostaria que retivesse era que há um ecossistema que possibilita a criação de peixe. E atrás desses pequenos peixes, como sempre, vêem os predadores. Talvez não saiba, mas dentro do rio há pargos de bom tamanho, há corvinas de 10, 12 kgs, ocasionalmente uma ou outra maior, há sargos, há saimas, há chocos, há raias, há salmonetes, há polvos e claro, atrás dos polvos, os inevitáveis safios. E atrás dos safios os apreciados lavagantes!
Os maiores pargos da zona vivem debaixo dos pilares da Secil, e chegam aos 10 kgs. São “impescáveis”, utilizando meios convencionais. Vivem junto a um emaranhado de cabos, pilares de betão, etc, da construção da fábrica. De quando em quando deixam-se ver pelos mergulhadores de garrafas, e sobretudo à noite. Na zona dos Fuzileiros, as paredes, onde têm alguns buracos, estão cravejadas de safios. Há blocos de cimento que sobraram da construção das instalações militares e aí andam sargos, e é muito frequente encontrar aí ninhadas de santolas. E nuvens de pequenos sargos alcorrazes.
Se quer saber mais, posso dizer-lhe que à saída do esgoto do Clube Naval Setubalense, onde se juntam as tainhas para comer o lixo orgânico que sai do buraco, andam uns meninos que podem chegar aos 9 kgs….chamados robalos. Esses rapazes engolem tainhas de 1 kg sem piscar os olhos. Vá vê-los à noite, da muralha a atacar a tainha, e vai entender como fazem: misturam-se no meio de milhares de tainhas que acorrem ao esgoto e quando lhes parece, ..mordem. A seguir, entram para a sua zona de descanso: ficam debaixo dos barcos de recreio da doca do Naval. Com todos os cabos de amarração que estão cruzados, …são intocáveis. Só os poderia “entalar“ de barco, à noite, do lado de fora. Também há alguns bem grandes numa zona de pesca proibida, a zona da Lisnave. Aí, com chocos vivos, poderia conseguir alguns dentro desse peso, oito a nove kgs.
Sobre safios, há uma marisqueira que faz sair para o rio os restos da sua exploração de marisco. Nas tubagens de esgoto, há safios que chegam aos 40 kgs…!
Rodrigo, o Sado tem muitos segredos que são guardados por quem sabe e acredite que são muito mais segredos do que aquilo que acha ser possível. Mas falamos de algo que não deve ser apoquentado, que deve ser deixado como reserva. Para pescar, até por razões de higiene, pescamos lá fora no mar e eu tenho muito gosto em o levar para uma saída de pesca.
Vou tratar a questão da influência da lua num artigo em separado, para não o estar a maçar com um texto muito comprido.
Abraço!
Vítor Ganchinho