TEXTOS DE PESCA - Manter o sangue frio


Quantas vezes já fomos à pesca e estivemos, por esta ou aquela razão, em situações de risco? Quer a pescar à linha de barco, quer a fazer caça submarina, quer a lançar a nossa pesca de uma falésia, as probabilidades de nunca termos estado em situações de perigo são quase nulas. Porque o mar é um meio hostil ao qual enquanto humanos já não pertencemos, e onde tudo pode acontecer, convém estar preparado para o pior.  



A caça submarina é uma actividade de risco, e é bom que se tomem as devidas precauções. Algo que funciona bem é isto: ter um roteiro de tarefas a desempenhar em cada mergulho. 
Faz-se mentalmente a preparação da descida, planeando cada ponto, cada acção. No caso de algo falhar, a primeira preocupação deve ser a de abortar essa descida, voltar acima e refazer as tarefas a desempenhar debaixo de água. 

É absolutamente imprescindível manter a calma porque na maior parte dos casos somos nós próprios que agravamos aquilo que de ruim se passa. Trago-vos hoje algumas situações em que as coisas se podiam ter precipitado em acidente.

1- Saí para fazer um mergulho aos sargos e robalos na zona da praia do Meco, numas pedras não muito profundas, até aos 17 metros, e onde havia na altura algum peixe de qualidade: pargos, abróteas e os omnipresentes sargos de bom tamanho e um ou outro robalo. Também as santolas ali são frequentes, e compunham a caçada ao fim do dia. Saí de Setúbal, num pequeno semi-rígido de 5 mts, com motor Honda de 50 HP. À passagem por Sesimbra, achei que o vento se estava a levantar, soprando de sul. Ao virar o Cabo Espichel estava como um lago, calminho, com água limpa. Disse entredentes à minha mulher algo como “não gosto nada disto”…e segui até ao local de mergulho. Ao chegar, equipei-me, operação que demora sempre uns 15 minutos. Ao acabar de aplicar a faca de mergulho na perna, meti a máscara na cara, agarrei na arma, lancei a bóia de sinalização à água, e num último gesto instintivo, resolvi voltar a analisar o vento. Soprava devagar, mas aquela zona fica protegida dos ventos de sul, e isso não queria dizer nada. Voltei a recuperar a bóia, e disse para a Lena: vamos embora! Ela não entendia a razão, já que o mar estava calmo, e tínhamos vindo de tão longe para mergulhar umas horas. Dei gás ao motor aquilo que pude, e ao chegar ao Espichel a figura já era outra: as ondas estavam a formar-se, o vento aí estava muito mais forte, e havia umas cristas a partir, a fazer “carneirinhos”. Ao chegar à Pedra do Arcangil já tínhamos vento forte, que entrava de proa. Pedi à minha mulher para se ir deitar na frente do barco, para fazer peso, e à passagem por Sesimbra, fiquei convencido de que a melhor solução seria mesmo meter para a Marina e ficar por ali. Porque o trabalho que dava era muito, pedir para alguém me levar a Setúbal, trazer o atrelado de volta a Sesimbra, etc, resolvi continuar. Má decisão. À chegada à praia da Figueirinha, os salseiros, os remoinhos de vento que se formam naquela zona em qua a serra da Arrábida faz uma baía, tornavam a navegação quase impossível. O barco, ligeiro, abanava ao sabor das ondas que naquele local já teriam uns 3 metros. Tentar manter um rumo era virtualmente impossível, porque o barco virava a proa a cada instante. Chegar a Setúbal foi um martírio, e apenas com muita paciência, muita condução, isso foi possível. Ao entrar no Clube Naval, o meu amigo Agostinho, operador da grua, dizia-me: “ Foste para o mar com este tempo? ….estão ventos de 90 km/ hora”….  

2- Estava a mergulhar em Sines, nos pés de galo do molhe norte. Fiz uma descida a pouco mais de 12 metros e espreitei para dentro das clareiras formadas pelo entrelaçado dos blocos de cimento. Havia robalos grandes. Meti a cabeça dentro do espaço vazio formado pés de galo e percebi que tinha à minha frente um imponente naipe de robalos na casa dos 4 a 5 kgs, calminhos, a apanhar sol por uma das frestas. Estavam nitidamente a descansar das suas correrias loucas atrás das cavalas. Passei o braço para dentro do espaço, mas ficava a faltar um pouco para conseguir o ângulo necessário para atirar ao maior. Acabei por ter de me meter dentro do pé de galo para atirar. E consegui de facto arpoar o maior que havia no cardume, mas com um tiro que não foi mortal. A seguir ao disparo, gerou-se uma confusão tremenda, porque os robalos começaram a disparar em todas as direcções, à procura de saídas. O meu robalo, preso pelo arpão, ficou ligeiramente entalado, o que me obrigou a dar um esticão no fio de nylon. Ficou desencravado, mas eu perdi o contacto com o ponto de entrada. No fim do mergulho, recordo-me perfeitamente do raciocínio que tive: “tens já pouco ar, mantém a calma, larga a arma, e concentra-te apenas em encontrar a saída”. E assim fiz, gatinhei para uma passagem estreita mas suficiente para me deixar passar e ganhar a vertical. Lembro-me de ter chegado à superfície em mísero estado, a dar rateres, com formigueiros nas pernas. Recuperei a respiração e desci. O robalo estava morto, com o arpão cravado. Naquele momento, ter entrado em pânico teria sido absolutamente fatal. 

Ninguém dá tanto valor ao ar que se respira quanto os caçadores submarinos, que não o têm disponível….


3- Este episódio passou-se nas ilhas, onde fui mergulhar com um amigo. Estava a descer a cerca de 20 metros e dei com uma furna escura, com pinta para ter um bom peixe. E tinha. Ao chegar ao buraco ouvi o som que todos ansiamos por ouvir mais vezes: uma sequência de pancadas surdas, abafadas, a indicar que um bom mero estava dentro. Fazem aquele característico pum-pum-pum com a cauda, quando saem do sítio onde estão, para se meterem para o fundo do buraco, normalmente um bastião inexpugnável. Este não o era assim tanto, porque percebi de imediato que o conseguia fazer. Entrei mais para dentro da furna, e preparei o disparo. Visei a cabeça e quando apertei o gatilho percebi que o mero, posteriormente pesado em 21 kgs, se tinha deslocado uns centímetros. O tiro entrou um pouco alto, e, embora bem cravado, não morreu de imediato, como era minha intenção. O que se passou a seguir foi terrível de sentir e recordo-o como uma das minhas piores experiências submarinas: o mero saltou de um lado para o outro do buraco, com o arpão cravado e ao passar por mim, a cabeça dele esbarrou com a minha, arrancando-me a máscara da cara. Fiquei sem ver a saída e meio enrolado no fio de nylon de 2mm da arma. Mais uma vez tive de apelar a toda a calma e paciência para conseguir sair dali. Com as mãos a tactear o tecto, desloquei-me na direcção da luz exterior. Senti as barbatanas a bater nas paredes, a raspar o fundo, e a dada altura a luz do sol já me rodeava. Solto, foi dar às barbatanas até chegar à superfície e engolir uma preciosa golfada de ar. Poucas pessoas serão capazes de dar mais valor a uns litros de oxigénio do que os mergulhadores em apneia, quando as coisas correm mal. Recuperei alguns minutos e fui então buscar o mero, que estava entalado ao fundo da gruta. Ofereci-o ao homem que me transportou no seu barco para aquela caçada. 

Vítor Ganchinho com um mero, o peixe que mais acidentes provoca, pela sua resistência e a sua força. 


Em qualquer uma destas situações, uma má decisão teria sido fatal. É muito importante conseguir manter o raciocínio em momentos em que o nosso corpo nos pede desesperadamente ar. Isso treina-se, pode-se conseguir melhorar um pouco, mas as condições físicas da pessoa, o endurance dado por milhares de horas de mar fazem, naqueles breves segundos, toda a diferença. Naqueles momentos, conseguir pensar para além da agitação do que se está a passar à nossa frente é imprescindível. 
Porque entrar em desespero é sempre fatal.


Vítor Ganchinho



3 Comentários

  1. Olá, Caríssimo Vitor
    Ao ler este magnifico texto, lembrei-me que seria ótimo misturá-lo num outro que escreveu á não muito tempo, e que abordava o tema "Quanto custa um bom peixe".
    Por vezes custa um pouco mais do que devia!!!
    Forte Abraço meu Amigo.
    cs

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    Respostas
    1. Bom dia Carlos Silva

      Efectivamente as coisas nem sempre correm bem. Quem mergulha está mais sujeito a este tipo de situações em que o peixe ganha. À linha, o que se perde são as baixadas, os anzóis. Eu tenho um caso de um miúdo do Pico, que era meu amigo, e que eu adivinhei com anos de antecedência que um dia iria perder.....
      Em meia dúzia de linhas, algo como isto:

      O Tiago era filho de um casal que se divorciou. A mãe saiu da ilha, com outra pessoa, deixando o pai com o filho, na altura com cerca de 15 anos. Porque os recursos não eram muitos, ( o pai produzia licores num alambique e fazia vinho do Pico...) o miúdo quis ajudar e começou a fazer uns peixes à caça submarina para vender no único restaurante da freguesia. A principio, havia muito peixe, baixo, e ele conseguia fazer quantidades boas e com isso algum dinheiro para dar ao pai. À medida que o peixe começou a ser apertado todos os dias, começou a descer mais e mais. O Tiago não tinha uma bicicleta, nem uma mota, e por isso tinha que ir mergulhar a pé. Ou seja, estava limitado ao mesmo espaço físico, e o peixe começou a rarear. Eu adivinhei o passo seguinte. À medida que o rapaz ia ganhando confiança a descer mais e mais, o peixe também ia sentindo mais e mais pressão e a dada altura, os peixes que habitavam a 5 ou 6 metros de profundidade, passaram a estar a 20 metros. Um dia, o Tiago ficou lá, dentro de uma furna, entalado, a 23 metros, agarrado a um arpão, com um mero na ponta. Esta foi uma morte anunciada, aos 18 anos.....eu sabia que mais mês menos mês, iria acontecer. Porque o miúdo não tinha alternativa de escolha, ele queria ajudar o pai a pagar os seus estudos, e as contas da casa. Foi das noticias mais tristes que recebi, sendo que sempre soube que a iria receber. Cheguei a mergulhar com ele e a ensinar-lhe algumas coisas. Fiz-lhe ver que nenhum peixe era suficientemente importante para valer a sua vida. A juventude dele, a boa capacidade física, treinada, empurrava-o para baixo. E ficou lá.
      Os meros matam quem vai com muita sede ao pote, porque sem sombra de dúvida têm mais força do que nós. Um mero de 20 kgs é um portento de força, estão fundos, no seu ambiente, e exigem de nós muita capacidade física e sobretudo inteligência. Só com técnica os podemos trazer para cima. Por vezes há quem queira vencê-los à força, e aí eles são melhores que nós. Os raios da espinha dorsal de um mero grande têm o diâmetro dos nossos dedos, e não dobram. E eles sabem que se os entalarem na pedra, não saem de lá. À força é muito difícil.

      Abraço!

      Vitor

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    2. Boa tarde Vítor,

      Desde a pesca apeada em falésias à referida pesca submarina, praticamente todas as modalidades de pesca de mar se tornam perigosas, quando se quebram "regras de ouro" e o preço disso, habitualmente é muito elevado!

      Subscrevo por inteiro o que o Vítor disse e muito bem... Um peixe não vale uma vida!

      Abraço!

      A. Duarte

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