Semana Sushi - E preparar peixe com o método… IKE JIME???? - Capítulo 1

Do país do hara-kiri só poderíamos esperar algo de transcendente no que diz respeito à morte de um peixe.
O Japão é seguramente o país onde se come mais peixe cru em todo o mundo. E precisamente por isso, terão porventura sobre ele o maior banco de dados e informação técnica, bem como muitas gerações de gente com experiência prática de como fazer.
Não me custa aprender com os melhores. E para aprender, quero fazê-lo com especialistas, com os melhores dos melhores.
Quando se trata de obter informação sobre métodos de preparação de peixe, falamos com quem, por profissão, o prepara todos os dias.
Aquilo que vão ler a seguir implicou uma recolha de dados feita sobretudo em solo japonês, porque são eles quem sabe a sério de preparação de peixe cru.
Este é um trabalho que me demorou cerca de seis semanas a concretizar.
Gostaria de fazer uma chamada de atenção: é-me muito fácil reconhecer que o povo português sabe tratar o seu peixe.
Somos um país de mar, as nossas peixeiras sabem bem o que é peixe fresco e como se limpa. Mas depois de limpo, cozinhamo-lo. Normalmente de uma forma simples, sem demasiados condimentos, sem chegarmos aos exageros dos franceses, que recorrem sempre a ervas e especiarias para disfarçar alguma menor qualidade do produto. Chamam-lhe arte. França tem boa culinária, tem bons produtos junto à costa, mas o país é muito grande e o transporte de peixe para o interior cobra-lhe alguma frescura.
É aí que entram as ervas aromáticas. De resto, a sua cultura culinária impede-os de saborear um peixe fresco grelhado, adicionando apenas sal. É simples demais. Tenho amigos em França que acham os métodos portugueses de confecção de peixe absolutamente primitivos, por não exigirem mais que sal e brasas. Respondo de forma muito directa: apresento-lhes na mesa um robalo grelhado, e …adoram.
Mas aqui a questão é outra, tratamos de peixe que será consumido em fresco, sem outro adicional que não os conhecidos molhos, quando os há.
Analisamos objectivos e resultados diferentes, e isso irá ficar claro ao longo destes textos, os quais, por comodidade e respeito pelo tempo de quem lê, resolvi segmentar em vários blocos.

Numa primeira fase, explicam-se as razões históricas que levaram as pessoas do sol nascente a comer peixe cru.
A seguir, a fase prática, de execução, com apresentação dos materiais necessários para que possamos ter um peixe fresco “à japonesa”.
Iremos também entender o que é o método Ike jime, como surge e com que propósito.
Por fim, alguns filmes de profissionais a exemplificar o trabalho de limpeza do peixe.

Venham daí para uma fantástica viagem ao mundo do tratamento e preservação de pescado.

Pesquei este pargo em Osaka, num… restaurante onde quem não souber pescar, não janta. Leiam a reportagem completa retornando no blog ao dia 30.04.20.


Pesquei pargos toda a vida, mas nunca utilizei um anzol rombo, e laranja como isca. É mau demais. Felizmente não tive de o fazer com a cabeça debaixo de água, em apneia. Vejam a caixa com pequenos cubos de laranja, por baixo das minhas mãos. Ainda assim, ferrei dois. Com sardinha tinha esvaziado o tanque...


Pargo com laranja. À direita da foto, as canas de pesca, que mais não eram que varetas de plástico, com um metro e meio de linha e um anzol. Já pesquei com material pior, mas também com equipamentos melhores... Pressuponho que as garrafas de saqué sejam para alguém beber, em caso extremo. Alguém que tenha deixado em casa bom material da Shimano...


- Um pouco de história:

Se Portugal é um dos maiores consumidores de pescado per capita, com 55.6 kgs / ano, (contra os miseráveis 22.3 kgs da média europeia), o Japão não nos fica muito atrás, com cerca de 54 kgs/ ano.
Ainda assim, e mesmo ocupando um honroso 5º lugar a nível mundial, o peixe representa para nós cerca de 1/3 daquilo que as Maldivas consomem. Mas eles, nos seus pequenos atóis de areia, não têm os nossos cabritos e borregos….


Reparar na posição de Portugal, logo atrás da Coreia do Sul, Hong-Kong, Islândia e Maldivas.


Tratando-se o Japão de um país formado por ilhas, é perfeitamente natural que o consumo de peixe seja algo comum. A riqueza alimentar do peixe em proteínas, minerais, aminoácidos essenciais e vitaminas justifica desde logo esta opção.
Ajuda sobremaneira a esta estratégica alimentar o baixo teor de gordura do peixe, constituída por ácidos polinsaturados e com baixo índice de colesterol. Indiscutivelmente o peixe é um super alimento, perfeito para a nossa saúde.
Mas no caso dos japoneses, isso não explica tudo. Na génese desta “preferência”, está uma decisão radical do Imperador Tenmu, que reinou entre o ano de 673 e 686 DC. Decretou nessa altura que não se poderia consumir mais carne de vaca, cavalo, cão, macaco e frango!
Já sei que repararam na questão da carne de frango. Foi este o momento de viragem, foi aí que o Japão despertou para o peixe, o arroz e as verduras.
Não terá sido fácil obrigar toda uma nação a mudar hábitos milenares de alimentação. Ao início da obrigatória prática de consumo de peixe, e sobretudo nas regiões de Osaka e Quioto, berços da culinária nipónica, era comum que apenas uma espécie de peixe fosse degustada, sob a forma de sashimi. Com isso conseguia-se obter o real sabor do peixe, sem misturas, sem interferências de outros sabores. Hoje, isso está ultrapassado, e é comum um mesmo prato apresentar várias espécies de peixe, e, não menos importante para eles, várias cores de peixe. Para que tenham uma ideia da importância da preparação e apresentação dos pratos, o Guia Michelin concedeu mais estrelas a restaurantes de cidades japonesas que a qualquer outro país do mundo. Somente a cidade de Tóquio tem mais estrelas que Paris, Hong-Kong, Nova Iorque, Los Angeles e Londres, todas juntas.
A informação espalha-se rapidamente, e apesar das origens japonesas do sushi e do sashimi, cada vez mais responsáveis de cozinha vêem adoptando as mesmas técnicas. Alexander Couillon, do restaurante La Marine, um duas estrelas Michelin, ou Dannel Krishnan, uma estrela, apostam muito no sabor puro do peixe, em cru. E mais ainda, tratam de o “envelhecer”, sem congelar, utilizando a técnica Ike jime. Referem algo que me parece curioso e por isso trago aqui: “ não há muita diferença de sabor, ao cozinhar e consumir um peixe fresco, capturado e cozinhado no próprio dia. Só ao fim de três, quatro ou cinco dias de envelhecimento se nota diferença, quando a carne de um pargo tratado com o método Ike jime ainda está firme, e de cor perolada”. Aquilo que chamam de “desenvolver uma dimensão umami”, obter um peixe maturado, ao fim do processo de envelhecimento.
Não gostaria que ficassem a pensar que este processo é um exclusivo do peixe. Em restaurantes europeus de alto gabarito, onde uma refeição não custa menos de 500 euros/ pessoa, é servida a perdiz depois de maturada. O nosso rei D. Carlos, caçador e pescador exímio, dizia por graça: “ a perdiz come-se com a mão a apertar o nariz”…em alusão ao facto de o seu paladar ser mais requintado depois de alguns dias de morta. Isto colide com a nossa noção imediata de frescura e o nosso conceito de comida saudável, mas já vão ver que não há antagonismo nenhum nestas duas formas de encarar o assunto.
Na cultura gastronómica japonesa, há um princípio que diz: começa-se por comer o peixe em cru, depois assado e por fim cozido. Tem a sua lógica. Isso acompanha as várias fases de transformação/decomposição do peixe e será universal. No Japão, bem como em muitos outros países asiáticos, é tido como bom poder apreciar o peixe que é morto no momento, garantindo dessa forma a sua frescura. Isso obriga os restaurantes a ter no seu interior enormes aquários, onde o cliente pode escolher o peixe que quer, ainda vivo. Poderíamos ir já por aqui, por este atalho, para a morte do peixe, e o método de Ike jime, mas penso que ainda há mais a saber antes de lá chegarmos.
Pode haver ainda melhor que fresco. Para quem come peixe fresco em sashimi, ou peixe cru maturado, a sua qualidade é muito importante. Vocês sabem dos valores astronómicos que pode atingir o quilo de atum no Japão. Não é por acaso. Eles são grandes apreciadores e sabem valorizar o que é um bom peixe. Mas falamos de dois processos distintos, a limpeza do peixe para consumo imediato, e o seu posterior tratamento para que se preserve mais dias. De qualquer forma, qualquer que seja a intenção, parte sempre da base inicial de um produto bem tratado inicialmente. O peixe é um alimento que pode ser preservado alguns dias, a baixa temperatura, e garantem os japoneses que um peixe maturado com 4 a 5 dias de ter sido pescado, pode ser muito mais agradável de comer que peixe fresco, do momento. Encaixa com aquilo que dizia o Rei D. Carlos, sobre as suas perdizes….

É difícil contrariar a opinião de um povo, e mais ainda quando se trata de um país com 130 milhões de habitantes, que fazem assim porque desenvolveram conhecimento específico nessa área.
Basicamente, comem peixe sob a forma de sashimi, ou sushi. E o que é isso?
Sashimi são alimentos crus, finamente cortados e servidos com um molho no qual os alimentos serão mergulhados antes de consumidos. Apesar do sashimi ser um filete de peixe cortado em fatias, ele não recebeu a denominação exacta de carne fatiada, que deveria ser Kirimi, pois para os samurais da Era Kamakura (1185-1333), essa palavra significava cortar o corpo. Corpo humano. O Sashimi é peixe fatiado, passado por uma mistura de molhos, normalmente soja shoyu e wasabi. Molha-se apenas de um dos lados, e não a totalidade do filete, ou perde-se a possibilidade de apreciar o sabor original do peixe. Mas é recente esta opção pelo shoyu, já que em tempos idos, a mistura era feita com vinagre e sal. Passou a molho de soja num período muito largo de tempo, compreendido entre 1603 e 1867, sem haver registos precisos deste facto.


Raiz japonesa de wasabi, de um sabor extremamente forte.


Não podemos nos esquecer do nabo ou pepino cortados em tiras bem fininhas que acompanham o sashimi. Parecem itens decorativos, mas, originalmente, serviam como elementos que ajudavam na digestão do peixe cru.
Serviam também como forma de anular o cheiro do peixe. Com a mesma função, podiam ser utilizadas folhas de shiso, uma planta nipónica muito aromática.


Se nós temos a nossa hortelã, os poejos, os coentros, a salsa, ….eles têm o shiso.


O sashimi tem acompanhamentos simples como as algas colhidas do mar; geralmente os peixes ou o marisco servem-se com molho de soja e wasabi. As variações mais menos comuns incluem:

Fugu: Peixe-balão venenoso fatiado, (por vezes letal se mal cortado). Uma especialidade tipicamente japonesa. O chefe responsável pela sua preparação tem de ter uma especialização (curso obrigatório) pois pode colocar em causa a vida dos seus clientes.

Ikizukuri: sashimi vivo

Tataki (ja: たたき): o atum da espécie Katsuwonus pelamis, vulgarmente conhecido por "Bonito" ou, em inglês, skipjack, que pode ser servido como prato principal em bifes levemente grelhados no carvão (só para caramelizar o exterior) e depois devidamente fatiado, ou então em cru finamente cortado temperado com chalotas, gengibre ou pasta de alho.

Caso um destes dias tenham a possibilidade de fazer uma refeição com um nipónico, há atitudes que não devem de todo tomar, sob pena de graves danos no código de etiqueta à mesa. Explico-vos algumas, pela sua singularidade:

É costume dizer itadakimasu (いただきます?), literalmente "Eu humildemente recebo", antes de começar a comer a refeição, e gochisōsama deshita (ごちそうさまでした?), literalmente "Foi um banquete", ao anfitrião depois da refeição e aos funcionários do restaurante na hora de ir embora.
O arroz ou a sopa são comidos pegando-se o chawan (tigela japonesa) com a mão esquerda e usando os hashis (pauzinhos) com a direita, ou vice versa se a pessoa for canhota. Tradicionalmente, os hashis são segurados com a mão direita e o chawan com a esquerda.
De resto, as crianças japonesas aprendem a distinguir esquerda de direita como "a mão direita é a que segura os pauzinhos hashis e a mão esquerda segura a tijela chawan". As tigelas podem ser levadas até à boca, mas não devem tocá-la, excepto no momento final de beber a sopa líquida.

Normalmente, o shoyu (molho de soja) não é colocado como condimento na maior parte dos pratos de mesa confeccionados na cozinha. Pode haver não apreciadores e assim, um pratinho para soja é fornecido em separado.
O molho de soja deve ser colocado directamente no tofu, mas nunca deve ser colocado em cima do arroz ou na sopa. É considerado rude desperdiçar molho de soja, pelo que deve moderar-se no seu uso quando estiver molhando os alimentos.

Os pauzinhos nunca devem ser fincados verticalmente no arroz, pois isso lembra palitos de incenso (que normalmente são colocados na posição vertical na areia) durante oferendas aos mortos.
Usar os pauzinhos para lançar comida ou apontar não é recomendável, e é considerado falta de educação mordê-los.

Quando se desejar dividir a comida com outra pessoa, é recomendável movê-la directamente de um prato para o outro. Nunca se deve passar a comida de um par de hashis para outro, pois isto lembra o ato de passar os ossos do falecido durante um funeral japonês.

Também por um uma questão de respeito para com os infelizes que não têm comida suficiente para viver, é costume comer o arroz até o último grão.

Amanhã vamos ter aqui as ferramentas para matar e limpar o peixe. Esta semana, come-se sushi no blog!



Vítor Ganchinho



2 Comentários

  1. Amigo Vítor,

    Apesar de não ser um profundo conhecedor da cultura Japonesa, o que sei, faz de mim um admirador.

    Penso que culturalmente, temos muito aprender com eles e o processo Ike Jime, é uma delas.

    Já li todos os capítulos deste seu último trabalho e mais uma vez, os meus parabéns pela excelência.

    Grande abraço
    A. Duarte

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    Respostas
    1. Bom dia António Duarte Tenho tido a possibilidade de ir ao Japão algumas vezes. Quer em trabalho, quer para ir pescar com quem sabe. E na verdade, nunca vim de lá desapontado. O Japão é um país em que, acima de tudo, impera um tremendo respeito entre as pessoas. Vivem e deixam viver. Sente-se que há harmonia, que tudo aquilo faz sentido, que tudo se encaixa. Aquilo que sinto quando chego é que sou respeitado, sou bem acolhido, e para onde me viro tenho alguém a querer ajudar, a querer ser útil, a mostrar-me que posso contar com aquelas pessoas. Têm um prazer profundo em mostrar como fazem e porquê. Para eles, nada melhor que colocarmos uma pergunta difícil. Recebem essa questão como um estímulo para que possam dar-nos conhecimento. E estão a anos luz à frente de nós, em termos de pesca. Sabem muito. E adoram ensinar, à maneira deles. Tudo começa por um: " senta-te aqui ao meu lado, vamos falar sobre isso...."

      Abraço!
      VItor

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