Hoje arranjamos peixe, …a sério

Portugal é um país de peixe, de gente que sabe de peixe, e que o sabe tratar. Na base de tudo, temos peixe em boas condições de conservação, aquilo a que chamamos “peixe fresco”.
Este é um tema muito interessante, dado que da forma como conseguirmos chegar a casa com o resultado das nossas pescarias, depende em grande parte o sucesso dos cozinhados das nossas parceiras.
Pouco poderão brilhar se o produto do nosso esforço se apresentar nas suas mãos seco, moído de vir prensado dentro de uma caixa pequena com outros peixes por cima, ou mole e cozido de apanhar sol.
Manter o peixe em bom estado é fundamental. Devemos ter em conta alguns factores que podem influenciar decisivamente a qualidade do pescado, de forma a mantê-lo o mais próximo possível do nível de qualidade com que ele foi capturado.

É pois um assunto interessante para analisar e um bom ponto de partida para o tema do blog de hoje.
Quer queiramos quer não, o Inverno e a Primavera ajudam-nos a resolver algumas destas questões. O tempo frio só por si já é um auxiliar precioso, ao permitir conservar em melhores condições a nossa pescaria.
Mas não pescamos só nessa altura, fazemo-lo muitas vezes em condições de canícula acentuada, no Verão e Outono e aí, com tempo quente, os cuidados terão de ser redobrados.
O calor deteriora muito rapidamente a qualidade daquilo que será a alimentação da família. Há que ter pois um cuidado extremo, e para isso, há que contar com equipamentos à altura.
Já aqui vos trouxe informação sobre geleiras de transporte de peixe. A Daiwa é para mim o expoente máximo da qualidade, e fabrica caixas térmicas que permitem manter peixe fresco durante 25 horas, um produto básico, até…128 horas, o seu topo de gama.
Dir-me-ão: “mas para que precisamos de uma geleira que preserve gelo em pedra durante tantas horas, se apenas vamos estar no mar seis a oito horas?”….
Na verdade, a medida de conservação em horas dá-nos a real qualidade do produto, e necessariamente algo fabricado para 25 horas tem como componentes de construção elementos que serão menos onerosos à produção do que, por exemplo, o modelo Daiwa TSS 6000, uma geleira topo de gama com 41.5 cm x 102.5 cm x 33.5 cm, que é utilizada por gente muito particular, pessoas que capturam regularmente peixes grandes, ou muito peixe, ao fazer deslocações de mais de um dia, em que manter a frescura é um imperativo. Também quem se desloca de barco e tem acesso restrito a meios de refrigeração, as pessoas dos veleiros, por exemplo, necessitam deste tipo de equipamento. Temos a tendência para olhar ao tipo de pesca que fazemos, esquecendo que há realidades que ultrapassam em muito a nossa.
Digamos que, na eventualidade de fazermos uma saída de pesca para um banco de peixe longínquo, afastado de terra muitas milhas, e que pelo investimento de tempo, combustíveis, despesas de aluguer da embarcação, etc, não justifica uma saída de apenas um dia. Suponhamos ir pescar ao Banco Gorringe, saindo do Algarve. Não é algo que se faça para estar a pescar duas ou três horas e voltar para casa. Faz-se para pescar dois a três dias. E porque o peixe que se pesca é de qualidade, e porque não vem mal ao mundo de abastecer a casa de peixe para alguns dias, é forçoso que a geleira onde vamos acondicionar o nosso peixe, depois de preparado, escamado, esventrado, etc, seja de facto de qualidade extra. É exactamente aí que entra a Daiwa TSS 6000, uma geleira que pode custar um pouco acima de 500 euros+ Iva….mas que dificilmente pode ser substituída por algum outro “gingarelho” quando a situação é mesmo extrema.



Vejam o produto aqui:




É com isto que é possível preservar peixe durante muito tempo. Colocam uma pedra de gelo dentro, fecham a geleira e três dias depois vão ver e está …igual.
Depois existe uma série de soluções que muito seguramente se adaptarão melhor à pesca que fazemos, uma pesca de um dia, correntemente de meio dia, e que terá menos exigências.
Mas não subestimem: as condições de pesca portuguesas não são as mais fáceis que já tive oportunidade de ver.
Na Finlândia pesquei num lago com uma camada de gelo debaixo dos pés de …60 cm de espessura. Ali, uma geleira é facilmente substituída por uma cesta de vime, uma caixa de madeira. O peixe congela em poucos minutos, ao ar livre.
Por cá, no dias quentes de Verão, com temperaturas a rondar os 35-40ºC, temo que seja necessário algo mais. Aquilo que vejo por essas marinas fora é uma indiferença absoluta relativamente ao estado de conservação do peixe.
Não lhe chamo ignorância, não é a palavra certa, chamo-lhe incúria e …desleixo. Estamos ainda na era da lata de tinta, …adaptada, ou do balde de plástico.
O peixe chega a casa de cada um em condições verdadeiramente deploráveis. Uma boa geleira poderia fazer muito pela qualidade do resultado das nossas pescarias.

Mas vamos avançar para a parte central que nos traz por cá hoje, a questão de arranjar peixe. Como fazer, para garantir a melhor qualidade?
Nós temos cultura de peixe fresco. Basta ir a um mercado municipal, e podemos encontrar verdadeiros especialistas a tratar peixe com muita qualidade. As nossas peixeiras, “motivadinhas”, pedem meças a quem quer que seja.
Passo-vos um filme que executei em Setúbal, em que o vendedor trabalha um peixe comum, um pampo, e consegue fazer dele algo de perfeitamente apresentável num bom restaurante:




O que acabam de ver fazer é algo de rotineiro, que pode ser visto todos os dias no mercado de Setúbal, com peixe que tem um valor comercial muito baixo, na ordem dos 7 a 8 euros / kg.
Eu pessoalmente utilizo uma técnica diferente, sendo que aproveito menos peixe, escolhendo apenas os lombos, rejeitando a cabeça. Mas eu tenho um “campo de recrutamento” de peixe desta espécie que o comum comprador que vai ao mercado não tem.

Vejam isto:






Para que tenham um contraponto, podem também ver uma outra versão de tratar peixe, neste caso no país do sol nascente, o Japão, onde as pessoas se orgulham de saber fazer, e onde o peixe é algo de muito importante:



Como veem, são duas realidades distintas, mas não necessariamente opostas. Não há uma melhor que outra, apenas são diferentes.
Portugal sabe fazer. Saberão os pescadores portugueses estar à altura destes profissionais? Não me parece, atendendo ao que vejo fazer por aí, que é um verdadeiro desconsolo. Trata-se mal o peixe capturado!
Seria muito importante que a questão da preservação do peixe fosse tomada muito a sério. Quando o pescado chega a nossas casas em boas condições, tudo é possível. Até mesmo preparar um sashimi de palavra de honra para a família. Faço-o com regularidade e as minhas filhas adoram:




Podemos utilizar peixes que serão menos “nobres”, mas de valor gastronómico garantido: cavala, sarda, carapau, por aí. E sai sempre bem, desde que tenhamos uma boa e afiada faca japonesa.
Basta juntar mais alguns ingredientes comuns à cozinha nipónica e temos algo parecido com aquilo que poderíamos obter num restaurante de qualidade. Cortar mais fino ou mais grosso, depende dos gostos de cada um. Uma boa faca permite fazer lâminas de peixe muito finas. Também o estado de cansaço do pescador, após chegar da sua saída de mar, tem influência directa no processo de corte.

Se estamos cansados, a tendência é para despachar o assunto…


Prato preparado por Mafalda Ganchinho, de 11 anos, que faz entradas para a família com arte e saber.


Tivemos aqui no blog a nossa semana Sushi. Foi um momento alto, com imensos comentários, e que valeu por toda a envolvência à volta dos artigos. Contei com a preciosa ajuda de amigos japoneses, que me deram imensa informação. Nunca fica tudo dito, pelo que retorno ao tema, por achar que se enquadra no âmbito da preservação de pescado. Na verdade, está tudo ligado, só é possível preparar pratos de peixe cru se o produto inicial, a base de trabalho, tiver qualidade.

Em Portugal não temos essa tradição. A aposta é feita no sentido de comer o peixe tão fresco quanto possível, pese a dificuldade em o consumir em condições óptimas no interior do país.
Mesmo no Japão, a tradição de consumir peixe cru não é assim tão antiga quanto poderíamos pensar. Na verdade, pese haver registos que transportam esse acto culinário para uma relativamente longínqua distância de 350 anos, com efeito apenas podemos situar o consumo de peixe cru como o conhecemos hoje, de forma massificada, a um período recente, de 150 anos. Antes disso, o peixe era comido cru, mas previamente salgado, e tratado com vinagre, para evitar a sua deterioração por via bacteriana.
A disponibilidade da soja liquida surgiu por volta do ano de 1700 e nessa altura já algumas pessoas cortavam o peixe e mergulhavam no molho. Mas verdadeiramente apenas se começou a generalizar em meados do século XIX.
E foi mais tarde, após a segunda guerra mundial, com o advento da grande revolução proporcionada pelo surgimento dos frigoríficos, o transporte de peixe por camiões dedicados à função, o saneamento urbano, etc, que a situação começou a mudar para o figurino que hoje conhecemos.
Entendo que os mais jovens que me leem tenham dificuldade em imaginar um mundo em que não é feita a remoção de lixo, em que as cidades têm esgotos a céu aberto. Londres, a cosmopolita cidade que hoje conhecemos bem, tinha um sistema de saneamento tétrico, horrível!
Aqueles que hoje vão passear e fazer compras a Londres em ruas como Regent Street, St James, Picadilly Circus, etc, dificilmente conseguem imaginar esses locais com pessoas a lançar para a rua alguidares com os dejetos das famílias. Sim, para o meio da rua.
Nestas condições, ingerir peixe cru é um perfeito suicídio.
Foi necessário mudar algo para que esse click acontecesse. Os japoneses sempre olharam para o mar como fonte de recursos alimentares, e desenvolveram por isso um amplo reportório de técnicas de cozinha. Onde o peixe cru entrou em força.

Falei-vos da técnica Ike Jime, e do seu potencial. No concreto, trata da questão da morte do peixe e da sua preparação, ou seja, retirar vísceras, sangue, etc. O passo seguinte é a sequência natural disso, é cortar.
A palavra sashimi significa exactamente comida fatiada, cortada. Aplica-se também a vegetais, não necessariamente apenas a peixe. E as facas são essenciais a um bom desempenho. Na GO Fishing Portugal, temos coleções de facas japonesas à venda, que permitem tirar partido da qualidade do peixe que temos.
O corte é muito importante. De resto, os japoneses têm um ditado que diz ”cortar é o mais importante, cozinhar vem em segundo lugar”. Em rigor, as boas facas nipónicas são laminas finas. Poderíamos fazer a barba com elas.
Os japoneses adoram cumprir as suas rotinas de afiar facas. Têm mesmo acessórios para o efeito, vejam abaixo:


Detalhe do suporte para a pedra de afiar. Talvez não saibam, mas existe muita tecnologia por detrás de uma faca japonesa. Eles fazem reparações de gumes de facas.




Para que tenham uma ideia o quanto afiar uma faca pode ser um acto técnico, espreitem este vídeo: 




Relativamente ao conceito culinário, ele é muito simples: fazemos sushi se pegarmos um pequeno bloco de arroz moldado, temperado com vinagre, e lhe colocarmos uma cobertura de peixe ou marisco fatiado por cima.
Ou fazemos sashimi se servirmos o nosso peixe cortado em finas fatias, com alguns ingredientes servidos em separado, e que são adicionados a gosto. Falamos de gengibre, wasabi e soja.
Sobre os peixes em si, temos um amplo leque de escolha, e a base é a referida acima: tudo, desde que fresco.
Nem todos temos acesso a atum fresco, mas é um must do sushi, sem dúvida. O sangue do atum é rico em ferro e aminoácidos que se decompõem muito lentamente durante o processo de fermentação, pelo que se torna um peixe ideal para consumir em cru.
Os nossos pequenos peixes, sardinhas, carapaus, cavalas, sardas, exigem um transporte muito cuidado, e nem sempre isso é possível. Ao ficarem moídos perdem imensa qualidade, pelo que apenas valem a pena se estivermos bem equipados de soluções de transporte.
Uma boa geleira é fundamental. Colocar um bloco de gelo que nos permita fazer o transporte na ordem dos 0º C, ajuda imenso. As fibras de proteínas do peixe são mais susceptíveis de deterioração que as da carne, pelo que todo o cuidado é pouco. O objectivo é retardar ao máximo a propagação de uma variedade de microrganismos que vão empobrecer a qualidade do nosso peixe.
Remover cuidadosamente as escamas e os órgãos internos, é um passo delicado. Há que ter em atenção a higiene extrema em que deve decorrer esta operação, até porque estamos a manusear peixe que irá ser consumido em cru.
As laminas das facas, os cabos das facas, a tábua de cortar peixe e as mãos, devem estar o mais limpas possível. Tratamos de higiene, de segurança alimentar e de saúde.

Eu costumo trazer um pouco de água do mar, captada longe da costa, e com isso faço uma pré-lavagem das fatias de peixe. O sal ajuda a inibir acções bacterianas. Há quem passe um pouco de vinagre e o resultado é idêntico.
E dê largas à sua imaginação. Não esqueça que um sashimi de vulgares carapaus, ou sardas, pode ser algo de transcendente para a família, desde que feito em condições.

Experimente!



Vítor Ganchinho



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