TON CRISE - MISÃO EMPOSIVLE

Já aqui vos disse que sou um perfeito pára-raios de acontecimentos insólitos.
Quando menos espero, e de onde menos espero, surge algo que me faz pensar que ainda me falta muito para entender na perfeição a natureza humana.
O que quer dizer que ainda sou demasiado novo. Ainda me faz falta viver um pouco mais para atingir um grau de sabedoria que me permita prever casos raros como aquele que vos vou contar a seguir.

Tudo começou por uma saída de pesca com três simpáticos finlandeses. Avô, pai e filho, juntos por evidentes laços familiares e sobretudo por uma enorme curiosidade de pescar em Portugal. E de conhecer métodos de pesca diferentes dos seus.
Faço aqui um parêntesis para dizer que estamos na presença de alguém que conhece a pesca com redes debaixo do gelo, e isso já é uma bizarria estranha. Tenho a certeza que nenhum português se sentiria confortável e demasiado à vontade de lhe dissessem que teria de esticar um pano de rede num lago, por baixo de uma superfície gelada de 80 cm de espessura, para pescar o seu almoço. Para um pescador português, isso seria sempre uma “misão emposivle”, algo que não faz sentido nenhum. E no entanto é o dia a dia daquelas pessoas, que vivem em circunstâncias difíceis, pelo menos à luz daquilo que fazemos em Portugal.
Eu estive a pescar na Finlândia, e percebi o quanto se valoriza a captura de um peixe. Remeto-os para um artigo publicado no blog em 15 Maio de 2020. Vale a pena ler, para ficarem com uma ideia de como pode ser duro ser pescador por esse mundo fora.
Aquela gente sofre muito para conseguir UM SÓ PEIXE! Em dias de vento gelado, com tanta neve, pescar é mesmo uma “misão emposivle”.


Quantos quilómetros somos capazes de fazer para pescar um único peixe? Há quem venha da Finlândia a Portugal...


Há realidades que ultrapassam em muito qualquer incrível capacidade de criar ficção: aquilo que nós valorizamos tão pouco, pode ser um desígnio de sonho, algo inatingível para uma família de pessoas que sonha com a pesca de uma …cavala.
Conseguem imaginar alguém que tem como aspiração máxima a pesca de uma boga? Pois isso existe. Porque no seu ambiente de pesca, isso já seria considerado muito bom. E estas pessoas esperam durante meses e meses pela possibilidade de lançar uma linha e um anzol e conseguir…um peixe. Qualquer peixe!


Lançar uma rede nestas condições é algo de surreal...


Eis o artista que assina este artigo, a sofrer com tudo: com o frio, com o pesqueiro, com o equipamento de pesca, e com o peixe. Pescar assim é uma “misão emposivle”.


Pois foi gente desta que levei ao mar!
Aquilo que vos conto hoje é estranho, surrealista, mas tem de ser entendido à luz de uma realidade muito diferente da nossa.
E só isso explica as reacções destas pessoas. Passo a contar-vos como foi:
Saímos de Setúbal pela manhã, mas não demasiado cedo. Gosto de estar no local de pesca quando o sol começa a raiar. Desta vez o astro rei ia já um pouco alto, demasiado, para o meu gosto, por volta das 8.00h da manhã.
Mas a missão de um guia de pesca não é a de arranjar desculpas, é de arranjar soluções. E, em função da temperatura das águas, da visibilidade, da profundidade escolhida, encontrar a melhor forma de conseguir apresentar resultados. Foi o que foi feito.
Ao chegar ao local de pesca, parei o barco algumas centenas de metros antes, para evitar fazer ruídos desnecessários. Para quem nunca pegou numa cana, tudo é novo, tudo é estranho, tudo necessita de ser explicado.
E a maré não pára. Cada minuto que passa conta, e mais nos afasta das condições ideais de pesca. Procurei tornar curto o meu habitual briefing, sabendo de antemão que teria de correr como um atleta olímpico caso surgisse alguma situação menos padronizada.
E surgiu mesmo!
Atendendo ao tipo de águas, com muito sedimento misturado, optei por jigs de 20 gramas, marca Xesta, modelo After-Burner, em cores claras, metalizados e brancos. Aquilo que chamos de cores mais…flash. Em águas tapadas resultam muito melhor que as cores naturais.
Penso que a razão se prende com o facto de darem ao peixe umas fracções de segundo mais, em termos de visibilidade acrescida, e que por isso mesmo potenciam o despoletar do ataque. Aquilo que faz o clic, a diferença entre o picar e não picar, é muitas vezes uma ténue coloração.
Que na prática se traduz por ser ou não possível conseguir ver em movimento o alvo a morder.



Olhei para a sonda. Algo estava por baixo de nós, e não era pequeno, atendendo à densidade de cor carregada, laranja e castanha, marcada na sonda. Posicionei o barco para fazer a deriva exactamente por cima e dei instruções para deixar cair os jigs.
Alguns segundos depois, ferrei, ainda na descida, um robalo com 2.5 kgs. Olhei para o lado e percebi que dois dos meus colegas tinham conseguido o mesmo. A dado momento, tinha três robalos a fazer correr linhas por baixo do barco, cada um na sua direcção.
É um daqueles momentos em que nos sentimos de coração apertado, porque a vontade de ajudar os meus companheiros esbarrava na impossibilidade de largar a minha cana e arriscar a sua perda.
A pescar com linhas finas de 0.28mm no leader, pese embora a sua alta qualidade, e falamos de fluorocarbono Varivas, toda e qualquer pressão extra poderia ser motivo de rotura. Há pescas que exigem paciência e tempo. E tempo, …esse eu não tinha.
Pressionei aquilo que me foi possível, para despachar o assunto. Alguns instantes depois tinha o peixe à superfície. Mas o meu colega do lado cometeu um erro e deixou o seu peixe cruzar a minha linha. Havia dois robalos a puxar, cada um para seu lado, com três ou quatro voltas de linha no multifilamento.
Retirei-lhe rapidamente a cana das mãos, dei-lhe as voltas necessárias sobre a minha, e consegui “desenlear” aquele imbróglio. Passei-lhe de novo a cana. E é nesse instante que o peixe capturado do outro lado do barco resolveu entrar em cena: um robalo de 4 kgs, com excesso de linha solta, dava a luta que podia. Veio até ao lado oposto do barco, o nosso.
Novo enrolo, a exigir calma e sangue frio. Sem luvas não o teria feito, mas avancei para a solução de agarrar o meu peixe pela queixada, junto à fateixa tripla Nogales, da Varivas, com anzóis que espetam só de olharmos para eles, e meti o robalo no barco.
Era tempo de correr para os outros peixes. O facto de se tratar de uma pessoa de idade, 76 anos, limita, e de que maneira, a mobilidade das outras pessoas. Com um rápido “desculpe lá o incómodo” meio gritado meio mordido, passei para o outro lado e consegui meter o camaroeiro no peixe maior. Movimento rápido e estava dentro do barco. Mais um esforço e estava do lado oposto do semirrígido a lançar a mão à guelra do último peixe. Era nosso. No espaço de um minuto, duas pessoas que nunca tinham pescado fizeram dois robalos, um de 3 kgs e outro de 4 kgs, a somar ao meu, de 2,5 kgs.
Começar uma pescaria desta forma deixa no guia de pesca uma sensação de coração preenchido. Os meus amigos finlandeses sentiam-se nas nuvens, davam largas à sua alegria.




O insólito começa agora: depois das fotos da praxe, feitas por um esmorecido jovem de 15 anos que não tinha obtido a ansiada picada, e por isso mesmo feitas em ar de despacho, meio aborrecido, a partir do outro lado do barco, vistoriei as baixadas das canas, para entender se seria necessário mudar algo. Muitas vezes os peixes grandes deixam a linha roçada junto ao jig, pelos dentes ásperos, e é de bom tom substituir. Não era o caso, o fluorocarbono estava perfeito, sem “escoriações”, pronto para outra.




Preparadas que foram as canas, informei de que iriamos voltar a subir a corrente, para fazer nova deriva, no mesmo local. E a resposta foi desconcertante:
Dizia-me um deles: _ “ Então mas destes, desta cor, nós já pescámos, ….podemos agora ir à procura de cavalas? …


Robalo de 4 kgs, um peça bonita para quem se estreia a pescar!


E o mais velho, olhando à geleira e ao facto de terem 9.5 kgs de robalos para fazer o seu jantar, questionou:
_ Então mas se já temos peixe mais que suficiente, ..porque não voltar para terra?....
Eram 9.30 da manhã. Ora digam-me lá se isto para um guia de pesca não é uma “misão emposivle”, apenas ao alcance do …Ton Crise?


Robalo de 3 kgs, um peixe que nunca será de deitar fora. Em baixo, encostada à geleira, a minha cana Xesta Scramble, equipada com carreto Saltiga Bay Jigging. Um verdadeiro elástico fino, cana com a qual tenho feito peixes muito bonitos.


Fiquei estupefacto! Para um finlandês, se já tem o peixe para o dia, está tudo bem. Imagino que a reacção de um português seria a de tentar pescar um outro robalo.
E se os havia: a sonda marcava um cardume de peixe valente!
Perante esta circunstância, pouco me restava senão abandonar o local, e tentar encontrar algo diferente. Todos sabemos que cavalas são aos milhões, e não é difícil encontrá-las. E foi o que foi feito, diga-se de passagem com muito êxito, na perspectiva dos meus companheiros. O que eles vibraram com a captura destas….”iscas”.


Isto é um acontecimento na Finlândia. “_Amigo Vitor, fotografe-me por favor, porque ninguém vai acreditar que pesquei dois peixes de um só golpe”!...


E eu a pensar no cardume de robalos….

Porque o miúdo não tinha conseguido fazer grande coisa, insisti para me darem mais alguns minutos de pesca, antes de retornarmos ao porto de abrigo.
Lancei a âncora e preparei algumas iscas de…cavala. A ideia era fazer com que o jovem finlandês tivesse algo que contar aos seus amigos, à chegada ao seu lindíssimo país.
Coloquei toda a gente a pescar ao fundo, dois de cada lado do barco.
Estava eu entretido com alguns peixes que me ratavam as iscas conforme podiam, o costume da pesca vertical, quando nisto ouço alguém dizer do outro lado do barco:
_ “ Este tubarão não come a minha isca”….
Olhei repentinamente a tempo de ver um enorme espadarte, seguramente a avizinhar os 100 kgs de peso, que passava lentamente ao lado do barco.
Pedi para não fazerem barulho. Foi o mesmo que pedir para fazerem todo o barulho possível! Gritos e canas a bater no fundo do barco, geleiras a arrastar, …
O espadarte afastou-se, sem pressas, mas com velocidade suficiente para tornar de novo a minha “misão emposivle”, pois pretendia filmá-lo. Não são muitos os dias em que temos um peixe daquela imponência, a três metros do barco. O jovem finlandês gritava-me então: “_ porque é que ele não comeu a minha isca?! Eu meti-lhe o anzol mesmo à frente dos olhos"...
Retirar luvas, apanhar o saco onde guardo o telemóvel dentro do banco, retirar lá de dentro o portátil e preparar para filmar, queimou tempo precioso para poder captar imagens com mais qualidade.




Isto é aquilo que é possível fazer com um telemóvel, quando o peixe já está a 50 metros de distância.
Que pena não ter sido avisado antes, um espadarte a três metros do barco, com boa visibilidade, seria seguramente um filme interessante.
Teria feito um filme de arromba, que me daria muito prazer partilhar convosco...



Vítor Ganchinho



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