MAR DE MONSTROS - CAP VI - O ALUNO... EMPERTIGA-SE

Eu, aluno, queria ser melhor que o Luís Ramos, mestre.
Queria pescar mais e melhores peixes que ele.
Qual lutador de sumo, resolvi desafiá-lo batendo com os dois pés no chão, à vez, para um choque frontal.
Esqueci por breves instantes, num momentâneo e perfeito lapso de razão, que estava a fazer uma pesca profunda que não é a minha, com linhas grossas e jigs pesados que raramente utilizo, num ambiente que não é o meu, a peixes que não são os meus.
E que estava com alguém que faz aquela pesca como profissional, naquela zona, naquele ambiente, àqueles peixes, …todos os dias.
Repito: …profissional…todos os dias.

Absolutamente incrível! Estas seriam as garoupas de uma vida para milhões de pessoas por esse mundo fora. Para mim também. Para ele são apenas o resultado de mais um dia de trabalho. Que técnica, que capacidade física, que conhecimento, que …tudo. Parabéns, Luís!

Até comecei bem!
Logo no primeiro dia de pesca e num curto espaço de tempo consegui concretizar todos os meus objectivos para a viagem: um mero dentão com 29,180 kgs, uma garoupa preta com 14,100 kgs e uma corvina, essa sim mais modesta, de 6,200 kgs. Em três peixes, cinquenta quilos de peso.
Fora isso, uma resma de peixes bonitos, o habitual by-catch que, garanto-vos, só por si seria uma pescaria de estalo nas nossas águas.
Como ele não pescou, apenas andou comigo a passear-me ao colo pelos seus melhores sítios de pesca, as coisas correram bem para o meu lado. Nitidamente eu estava a ganhar.
Vantagem de cá.

Relatei-vos aqui no último número do blog a minha captura de um peixe grande, concretamente um mero dentão de bom porte.
Durante o combate, apliquei-me a sério, fiz força, mas senti o corpo a reagir bem. Estava bem treinado e até muito longe do esgotamento físico total, só que aquele era apenas o primeiro de muitos dias de esforço. No fim da semana confesso que já não tinha a mesma frescura. Levantar dos fundos longínquos adversários daquele calibre deixa-nos exaustos.
Durante a noite, quando seria pressuposto estarmos a descansar, acordamos sobressaltados porque os ossos do corpo estalam!
No último dia de pesca estava física e mentalmente arrasado, mas já tinha comigo fotos comprovativas do êxito da viagem. O peixe de bandeira fora conseguido e para mim isso era importante. Primeiro porque queria muito um mero dentão daqueles, segundo porque não tinha dúvidas de que a captura daquela garoupa me daria assento nas reuniões do Conselho de Estado, à direita de Sua Excelência o sr. Presidente da República.
E a chave da cidade de Lisboa. E presença garantida em todos os outdoors do país.
Deste tipo:

Que peixe! A sua captura foi uma coisa tão estranha que Cristo não hesitou, desceu à Terra e veio ver com os seus próprios olhos.

Estas coisas, quando resultam bem, fazem-nos pensar que somos capazes de fazer tudo. Que somos imbatíveis. E daí até levarmos uma sova a sério é um passo curto. O Luís, logo no dia seguinte, suavemente, com a sua pesca pausada, aparentemente sem esforço, mostrou que ainda há quem mande ali.
Fez uma sequência de peixes de faltar o ar…
Vantagem de lá. Senti que me faltava um pouco de peso para me poder bater de igual para igual...

Não devemos comprar lutas que não podemos vencer. Neste caso, eu atrever-me a desafiar o campeão de pesca foi um erro clamoroso…

O desgaste de tentarmos copiar o que ele faz, da forma como o faz, é tremendo. Pagamos a ousadia com músculos cansados, esgotados, a pedir clemência pelo atrevimento.
Quando se tenta competir sem que o oponente sequer o perceba, a ressaca ainda é pior. Perdemos de forma inglória e sentimo-nos desolados por dentro.
Ficamos a precisar de muitas caixas de chocolates, uma massagem a duas mãos suaves e delicadas, e um divã macio onde, deitados de costas, queremos falar horas e horas sobre os nossos traumas.

A minha versão de garoupa….por cá seria um bom peixe, de Matosinhos a Sagres. Mas ali, não.

Vocês já viram isto nos filmes de poker: o jogador está convicto de que tem a jogada perfeita e é imbatível. Enche o peito de ar, abre um sorriso largo e lança as cartas sobre o pano verde para que todos vejam o seu Full House.
A seguir, lentamente, sem esboçar qualquer emoção, o outro jogador estende o braço e da sua mão calma e experiente saltam quatro cartas com um Royal Straight Flush, a jogada máxima. E ganha.
Ele trouxe do fundo várias garoupas bonitas, eu nem por isso, andei enrolado com as “iscas” que as garoupas dele comem. Apareceram-me apenas peixes “miúdos” considerando o potencial da zona.
Assunto arrumado, de momento.
Na verdade, apenas por esse dia, …o espírito competitivo leva-nos de novo ao tapete de luta e lançamos mais sal no ringue, a desafiar o mestre.
Assim que recuperamos o fôlego, estamos prontos para outro combate de sumo. A sorte muda sempre no dia seguinte.

Isto naquelas águas é andar de “missanga em missanga”. 

Sabendo da minha vontade de conseguir uma corvina, levou-me a um dos spots onde elas costumam aparecer. Ele controla a sua movimentação de acordo com a hora do dia e da maré e só passa na zona se as condições estiverem perfeitas.
O conhecimento vai ao ponto de poder definir locais de permanência em função da época do ano. Na verdade, sabe sempre que cartas temos na mão porque está a vê-las, joga com o baralho todo… é tudo dele.
Aqueles que acham que podem fazer o mesmo que ele levantem o braço. Estou seguro que a maior parte daqueles que me leem estão seguros e convictos de que o poderiam fazer. Talvez não.
Estar no mesmo local, com o mesmo equipamento de pesca, a dois metros dele, não significa necessariamente obter os mesmos resultados.
A distância que vai de um amador para um profissional não é só a medida em centímetros que os separa no barco. A quantidade de detalhes que ele controla ao mesmo tempo é um absurdo, e muitos deles, para alguém menos observador, podem até ser invisíveis.
A começar por ser capaz de posicionar o barco sobre o pesqueiro da forma que mais lhe convém. Foca a sua atenção na deriva do jig, muito mais que na corrente ou no vento. Parece estranho, mas na verdade ele não considera mais que o posicionamento do peixe e a descida do jig. Marca o peixe na sonda, (chegou-me a mostrar o peixe encostado ao fundo a 140 metros, e a nuvem de comedia fina que estava sobre ele, a rodeá-lo…), e manobra de forma a ter o barco na melhor posição para o jig descer exactamente sobre a sua cabeça.
Se muitos de nós somos capazes de garantir a colocação do barco sobre um ponto, a nossa margem de tolerância relativamente a esse ponto poderá ser de “uns metros”. A dele é de “uns centímetros”. Poucos.
Haverá muitos de vós que acham que seriam capazes …porque sim. Parece-vos que aos comandos do barco dele, naquele sítio, fariam igual, ou melhor. Pois, …talvez não.
Não basta querer porque isso querem todos. Não basta saber algo sobre coordenadas e manobras de barcos. E ser bom a lançar jigs. Ainda não é isso, é muito mais….
Há todo um processo de aprendizagem, de aperfeiçoamento, que leva anos.
E se um pescador quiser queimar etapas, o resultado final não será diferente de alguém que acaba de tirar a carta de condução e quer arrancar …em quinta.


O que nos mata nem são os peixes, muitas vezes com muito mais força que nós. Esses são o motivo que nos leva a ir lá, a aguentar firme quando o mais fácil seria desistir. Esses são a parte boa da questão.
Não é isso. São os pequenos detalhes, quase sempre invisíveis, que nos matam. Um deles é perfeitamente insuspeito: a humidade.
Transpiramos em abundância, continuamente, e isso enfraquece-nos, deixa-nos sem forças. A solução é hidratar, ingerindo muitos líquidos, tentando assim perder o mínimo possível de energias.
Em terra, quando se diz que estamos perto de um sítio, a não mais de quinze minutos a pé, isso quer dizer que a distância pode fazer-se em cinco minutos mas que devemos ir devagar….
O problema é que quando pescamos muito facilmente olvidamos a água, a comida. São as temperaturas altas, o sol directo, a humidade, o peso dos jigs, as correntes, a quase abstinência de água e comida. Nem nos lembramos de comer!
Os nossos anseios são direcionados para uma picada de um daqueles monstros, e pouco mais.
A quantidade de informação que ele nos passa é de tal ordem que olvidamos coisas “mundanas” como…alimentos. 
É outro o tipo de alimento que procuramos...


Vítor Ganchinho


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4 Comentários

  1. Luis Ramos03 maio, 2024

    Espectáculo grande Vitor. Não imagina o quanto eu me rio com as analogias que faz ao longo dos capítulos..kkk...genial. Muito obrigado e os parabéns pelos capítulo e venha os próximos. Grande abraço

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    Respostas
    1. Oi Luís! Não vai ser fácil estar desse lado na próxima semana.
      Acho que tirei uns dias só para dizer mal.

      Aconselho a compra de umas quantas caixas de Xanax, e umas garrafas de vinho tinto.
      Para anestesiar...

      Abraço
      Vitor

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  2. Que texto maravilhoso.... ir lá e pescar com o Luis é sem duvida tudo isso e muito mais!
    Muito obrigado por este momento que me levou a viajar até ao Lobito.
    Abraço
    Emanuel Fernandes

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    Respostas
    1. Tudo nos parece fácil quando pescamos com ele.
      E a capacidade que ele tem de controlar a embarcação?!

      Recordo-me de um dos dias termos saído e de não estar vento nenhum.
      O mar estava calmo, a água azul e lisa à superfície. Um dia bom para as mulheres casarem de vestido branco com cauda comprida. Saímos da Marina bem cedo e nada fazia prever o vento que se levantou, e a vaga que iria surgir a meio da manhã. Aumentava mais e mais, e a dada altura já as ondas formadas não convidavam a nada mais que uma retirada estratégica. Ele fazia um esforço enorme em conseguir controlar o barco, que saltava de pico em pico de onda.
      Para lhe fazer saltar a tampa, eu ainda mudei para um jig de 160 gramas, mais leve que os anteriores, e obviamente esse jig levava mais tempo a chegar ao fundo.
      Pois mesmo assim, e enquanto eu quis pescar, ele aguentou o "Incrível" em cima dos pontos.
      Eu estive a pescar como se estivesse num lago, sempre na vertical. Como se nada se passasse.

      Da parte dele não há um queixume, não há uma reclamação, o que há é uma capacidade de trabalho absurda, um acreditar até ao último lance.
      Chegámos a estar meio dia sem fazer um peixe e ele apenas olhava para a carta e conduzia o barco. A dada altura entendeu qual o padrão para esse dia e a partir daí fizemos uma série de peixes bonitos.

      Vamos ver se vocês gostam dos próximos artigos, um pouco mais ligeiros. Espero que sim.

      Abraço
      Vitor

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