Quando comecei a pescar douradas, vai para mais de 30 anos, os exemplares que apareciam “à pesagem” eram peixes adultos, encorpados, velhos.
Eram tidos como intratáveis para quem pescava com linha um pouco mais fina.
Os carretos não tinham os drags de hoje, tudo era mais tosco, mais bruto, e sim, as baixadas faziam-se em nylon de 0.60mm, que elas não se rendiam por menos.
Não existiam linhas multifilamento, o fluorocarbono também ainda não existia, o tempo era o do nylon, uma linha que tem vantagens e desvantagens, mas que, à falta de melhor, resolvia.
Hoje custa-nos a acreditar mas era assim mesmo, o nylon imperava, sendo utilizado quer na baixada quer na própria bobine do carreto. E, por falta de qualidade congénita, sempre grosso.
Na altura a solução era mesmo zero grosso, …ou nada.
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Isto não tem nada a ver com as douradas da Vereda de há 30 anos….é apenas a mesma espécie. |
Os peixes batiam na navalha, na ameijola, ou na “bomboca” um bivalve muito comum em Setúbal e sobretudo barato, e as canas em fibra de vidro com uma braça de comprimento pendiam dobradas ao seu limite.
A braça marítima consiste numa unidade de comprimento usada pelos nossos marítimos de antanho, e ainda hoje há muito boa gente que continua a utilizar esta referência de medida, quer para objectos quer para medir profundidades.
É aproximadamente igual ao comprimento dos dois braços estendidos de um homem, valor calculado em 1,83 mt, sensivelmente.
Era o que havia, e porque não se conhecia melhor, todos os que tinham canas de fibra de vidro eram tidos como progressistas. As canas de carbono e o seu novo standard de 3,70 mts chegariam muitos anos depois.
Para que se situem no tempo, quem fazia pesca de costa a pouco mais poderia aspirar que a ter uma boa cana em bambu trabalhado. Os tempos eram outros…
Ainda assim, o princípio da fibra de vidro era correcto, e ainda hoje se utilizam canas feitas com este producto, o qual é sensível, flexível, e inquebrável.
Muitas das ponteiras aplicadas nas canas de carbono de hoje vêm equipadas com uma a duas ponteiras em fibra e a razão prende-se
com a extrema sensibilidade que aportam ao conjunto. Não eram leves mas também é verdade que se hoje o padrão é trabalhar num escritório e carregar em teclas, nesses tempos fazer trabalho braçal era norma.
A fibra de vidro era a forma de conseguir trabalhar peixes com tamanho e peso, que os havia em quantidade. Rezava a boa técnica que se deixasse bater o peixe, e que a recolha fosse feita o mais lentamente possível, mas a passo certo.
Muitas douradas, não obstante todos os cuidados, acabavam por ir embora à conta da baixa qualidade dos anzóis e linhas. O custo dos equipamentos prevalecia sobre a qualidade destes, sempre.
Acendiam-se velas desde o fundo até acima porquanto muitos destes peixes não chegavam a ser vistos, partiam as linhas dos incautos pescadores a meio da subida. Ou dobravam os anzóis.
Douradas de 6/7 kgs não eram raras.
Se os espanhóis referem exemplares a rondar os 9 kgs na Galiza, terra de mar batido e muito marisco, e por isso mesmo com grandes condições para criar peixe bem vitaminado, também na zona do estuário do Sado os grandes exemplares não se inibiam de crescer a insuspeitos tamanhos. A verdade é que hoje em dia esses peixes não passam de quimeras, sonhos de pescador.
Aparecem por ano meia dúzia delas para lembrar que já existiram muitas.
Tudo mudou.
Recordo-me bem dos monstruosos exemplares que se espreguiçavam ao comprido das caixas, (as ditosas caixas laranjas surripiadas por alguém na lota) e que faziam rodar os olhos nas órbitas dos transeuntes que passavam junto ao cais.
Hoje pescam-se sobretudo peixinhos juvenis, exemplares de 1 kg, ou menos, capazes de uma ligeira corrida de alguns metros, mas na altura as douradas eram outras e vendiam bem cara a sua derrota.
Bem sei que nos dias que correm vos custa a imaginar peixes de tal forma grossos que duas mãos de um adulto não os abarcavam. É difícil imaginar.
Falamos de douradas que esticavam as suas imponentes medidas de um ao outro lado dos açafates.
As caixas de peixe ficavam cheias com duas ou três cabeças bem encostadas a um dos bordos da caixa, caudas a passar folgadamente do outro, e pedidos desesperados de ajuda para as descarregar dos barcos para terra.
Lembro-me disso. Cansados das lutas, exaustos de fazer força e de trabalhar duro todo o dia com uma sandes de queijo e uma cerveja pelo meio, os pescadores pediam ajuda para passar as douradas para os carros dos compradores.
Duas pessoas transportavam uma caixa com três desses peixes, corriam às carrinhas estacionadas com quatro piscas ligados, enchiam-nas de douradas, os felizes compradores pagavam em numerário e saíam para dar lugar a outros.
Que não era legal isso não era, o Estado português odeia todo o tipo de actividade que não lhe renda dividendos, mas as coisas faziam-se quase às claras e sem grandes problemas de fiscalização.
O sistema era conhecido de muitos, e pressuponho que mesmo hoje em dia não seja novidade para ninguém: compram-se meia dúzia de peixes passados na lota, com carimbo legal, com facturas, e os documentos dessa pequena compra servem para todas as outras compras clandestinas que são feitas nos dois dias seguintes.
Parte desse dinheiro era reinvestido pelos pescadores em material, sobretudo linhas e carretos.
É verdade que se os Daiwa Saltiga aguentam a carga das douradas e muito mais, já os carretos chineses que na altura pululavam pelas casas de pesca ribeirinhas apenas duravam dois ou três dias o inclemente tratamento de puxar por aqueles peixes encorpados, carregados de energia.
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O stock médio de peixes que agora existe é de tamanhos bem mais terrenos, mais comedidos. |
Setúbal, terra de chocos e douradas em abundância, tratou bem as pessoas que se despediam ou tiravam licenças sem vencimento para fazer os quatro meses da safra da dourada.
O sistema servia a muitos, (sei de casas, barcos e carros comprados à conta das douradas do Sado) e claro, os exageros aconteciam. Gente que saía três horas antes do nascer do sol para não ser visto, gente que se levantava três horas antes do habitual para estar no rio e poder seguir a esteira daqueles que não queriam ser vistos a sair para os seus pesqueiros…
E tiros dados para o ar para que as embarcações não se aproximassem muito de quem religiosamente zelava pela marca GPS do seu pesqueiro “exclusivo”…
De gente que lançava ao mar dezenas de quilos de ameijolas partidas para garantir que na madrugada seguinte teria as douradas engodadas na sua marca de pesca.
Não imaginam o fervilhar de vida, as aventuras e desventuras à volta do tema douradas de Setúbal.
Os restaurantes compravam peixe fresco do dia a preços que correntemente não chegavam a metade do preço de compra em lota e por isso estavam sempre interessados em esperar pelas embarcações amadoras.
Nessa noite e no dia seguinte os clientes deliciavam-se com peixe fresco grelhado à posta, ou, como é hábito fazer-se em Setúbal, escalado ou ao sal.
Dourada no sal era um dos pratos mais correntes nos restaurantes de Outubro a Janeiro.
Grupos de clientes tentavam reservar mesas para estes acepipes na zona das Fontaínhas, e se alguma coisa era segura eram as douradas. Havia sempre douradas.
Mesas nem sempre.
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Os ventos fortes e persistentes de leste acalmam e limpam as águas do Cabo. |
Confesso a minha nostalgia desses tempos. Tudo mudou.
Hoje é difícil explicar a alguém a importância que a safra da dourada tinha para uma cidade como Setúbal e o quanto ela marcava o tempo de ir aos restaurantes comer peixe fresco.
Mais que isso, é difícil explicar a alguém que já não há peixes desses nos locais onde antigamente os havia em abundância.
Acabou.
Aquilo que existe é uma caricatura, um esboço feito a lápis de carvão de uma realidade que existiu e que durou enquanto não se cercaram de redes as pedras que garantiam a reprodução sistemática das grandes douradas atlânticas.
Colocar redes no rio na altura da entrada das fêmeas carregadas de ovos foi um duro revés. Colocar redes de centenas de metros encostadas às paredes do Espichel outro duro golpe. E por fim, os grandes exemplares, aqueles que produziam um quilograma de ovulação e que garantiam por ano centenas de novas douradas, ficaram cercadas de redes ao largo, nos últimos redutos onde podiam cumprir a sua reprodução. E chegámos ao que temos hoje, …nada.
O pescador é por norma um crente, ou não seria pescador. Acredita em tudo o que lhe dizem se isso for ao encontro dos seus mais secretos sonhos.
Somos bem mais capazes de acreditar que andam douradas de metro lá fora do que aceitar que isso é uma impossibilidade e que não existe.
Queremos acreditar que existem, porque queremos continuar a sonhar que um dia nos vai calhar uma dessas na ponta do anzol.
Pudesse a realidade ser diferente...
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As frias manhãs da Vereda das douradas. |
Dúzias de pessoas saiam dos seus empregos e faziam romarias aos locais de amarração dos barcos, ao Clube Naval de Setúbal, só para poderem ver com os seus olhos as grandes douradas desse dia.
Hoje, bem …hoje já não vão...
Vítor Ganchinho
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Bom dia Vitor.
ResponderEliminarObrigado pelo seu testemunho!
A pesca da dourada já foi algo de muito sério na nossa zona.
EliminarAcredito piamente que estamos porventura no melhor spot de douradas da Europa, que é aqui que elas encontram as condições ideais para crescer e reproduzir.
Só isso explica as capturas assombrosas que se fizeram nas últimas três décadas, na ordem dos milhares de toneladas.
A informação que tenho chega-me de França e Espanha, países onde elas também existem em força.
Mas nada que se compare com isto...
Abraço
Vitor